
O Brasil que se forma nos nossos olhos
Como descreveríamos o Brasil para um amigo estrangeiro que está pensando em vir morar aqui com a família? Como descreveríamos o Brasil para os nossos filhos? Como queremos que eles vejam o nosso país? Como descreveríamos o Brasil atual para um antepassado que faleceu há 50 anos? Quais foram as mudanças que julgamos serem relevantes? Houve mudanças relevantes?
Seja qual for a história a contar, seja qual for o perfil do Brasil a se traçar, qual patamar de segurança poderíamos atribuir ao nosso relato? Que percentual de correspondência com a realidade ele mereceria aos nossos próprios olhos? Achamos que temos um bom conhecimento, fidedigno, sobre o Brasil?
De onde provém o nosso conhecimento sobre o país? Além da nossa experiência direta insubstituível — por certo, muito verdadeira, enquanto experiência pessoal —, quais são as nossas fontes? O que lemos? Quem lemos? A que assistimos? Com quem dialogamos? De quem divergimos? Quem escutamos?
Quais são as categorias e os conceitos que usamos para pensar o Brasil? Vemos o nosso país como a nossa casa — como parte de quem nós somos, como dimensão integrante da nossa existência — ou preferimos enxergá-lo com certo distanciamento, com certa alteridade? Ao olharmos o Brasil, nos vemos ou vemos os outros? Notamos nossas qualidades ou identificamos os defeitos dos outros?
Estamos apaixonados pelo Brasil ou nos encontramos numa fase de mágoa, de ressentimento, de certo desprezo ou mesmo de indiferença com a nossa terra e o nosso povo? Temos conversado sobre a relação? Ou preferimos ir tocando, sem refletir muito, sem querer escutar muito, um tanto receosos com o que pode vir à tona desse papo mais sério, mais profundo, mais olho no olho?
Há admiração pelo Brasil? Brilham os nossos olhos quando pensamos no futuro do país? Nos sentimos orgulhosos de estarmos construindo, no presente, esse futuro? Ou há mais um tom de desencantamento e frustração com o que poderia ter sido e não foi?
O que nos incomoda no Brasil? Quais são as suas características que nos deixam um pouco envergonhados? Quais usos e costumes produzem em nós uma sensação de não pertencimento? Ou, ao revés, há um sentimento de excessivo pertencimento, o choque de nos vermos no espelho sem filtros e com uma luz não tão boa, de estarmos sendo filmados sem aviso prévio? Sorria, você está sendo filmado.
Os nossos mitos
Como fomos ensinados a ver o Brasil? Jovem, promissor, pacífico, miscigenado, mestiço, criativo, continental, sem terremotos e sem vulcões, com uma incrível biodiversidade, alegre, caloroso, cordial, esperto, malandro, improvisador, resiliente, religioso, católico, com um rico sincretismo religioso, tradicional, familiar, folclórico, burocrático, colonial, preguiçoso, desigual, analfabeto, pobre, emergente, subdesenvolvido, agrícola, improdutivo, degradado, sem infraestrutura, sem apreço pelo passado, politicamente instável, ecologicamente irresponsável, alheio às oportunidades, fechado ao mundo, autossuficiente, com um poder público caro e ineficiente, dominado por uma casta de privilegiados, com um futuro maior — ou menor — que o seu passado? Como nos ensinaram a ver o Brasil? Era o país do futebol, do carnaval e das novelas? Foi assim ou de outro jeito?
O que, de tudo isso, marcou a nossa imaginação? O que moldou o nosso olhar e molda, queiramos ou não, nossa ação?
Nossos mitos fundadores — do descobrimento português, da miscigenação das três raças, da unidade nacional, da independência pacífica, da convivência harmoniosa — remetem a uma terra abençoada por Deus, que desfruta de um lugar único no mundo, de uma situação privilegiada. Nossos mitos falam de um país com um destino quase inexorável, que se realizaria sem esforço e sem trabalho.
Não é um país a ser construído, que pode ter diferentes destinos e caminhos; portanto, chegar a um bom porto exigiria responsabilidade, compromisso, atuação. Não. Nossos mitos fundadores falam de uma nação com características únicas — de terra e de povo —, cujo destino não depende da ação coletiva. Neles, a população não é protagonista, É abençoada. Que sorte a de viver num país sem guerras.
É verdade que o mito da paz e da diversidade, da convivência pacífica, anda bastante enfraquecido, desgastado. O século XXI expôs uma nova sociedade brasileira. Colocou novas questões, reintroduziu as perguntas de sempre. Se somos tão sociáveis, por que não nos integramos à América Latina? Por que demoramos tanto a abolir a escravidão? Por que menosprezamos tanto a educação? Por que resistimos tanto a ver, reconhecer e reparar as consequências da escravidão e do racismo?
Se somos pacíficos, por que temos índices alarmantes de violência? Por que há tanta dificuldade em admitir a realidade: somos um país violento?
Se o Brasil é o país do futuro, de qual futuro estamos falando? Estamos pensando em riqueza ou em humanidade? Estamos falando de números ou de pessoas? Estamos nos referindo ao sucesso ou ao sossego? Ao lucro ou à paz? O que temos a oferecer ao mundo? O que queremos oferecer ao mundo? Colocaram-nos ou fomos nós que nos colocamos como país do Terceiro Mundo? O que pensamos ao falar em Terceiro Mundo? O que nos atrela a esse mundo do subdesenvolvimento, do quase lá? É destino ou é nossa própria omissão? Estamos realmente insatisfeitos com o lugar do Brasil no mundo ou estamos muito satisfeitos com o nosso lugar dentro do Brasil?
Lento e rápido
Muitos dos nossos problemas permanecem praticamente inalterados ao longo das décadas, ao longo dos séculos: a pobreza, o racismo, as desigualdades sociais, a disparidade de oportunidades, a ineficiência do setor público. Para uma significativa parcela da população, a cidadania é como sempre foi: meramente formal. Os direitos da Constituição de 1988 não lhes foram reconhecidos na prática. Na vida real, a efetividade dos direitos continua sendo para poucos.
Mas isso não significa um país imóvel. Houve mudanças sociais importantes. Não temos a menor taxa de natalidade do mundo, mas somos recordistas na desaceleração do número de filhos por mulher. Somos um dos mais intensos usuários de redes sociais, de tempo dedicado à internet. Promovemos uma massiva inclusão de crianças e adolescentes no ensino formal.
Não somos, portanto, tão passivos como querem fazer crer nossos mitos fundadores. O Brasil mudou não apenas demograficamente — a transformação de uma sociedade rural em urbana em menos de meio século —, mas também culturalmente. Consumidor de ideias e produtos globais, produtor de ideias e produtos igualmente globais.
Há uma plasticidade cultural, amoldamo-nos rapidamente às novidades, às tendências, ao espírito dos tempos. Entre os sintomas disso, está o esgarçamento das relações sociais. Essa plasticidade é aggiornamento, mas é também tensão. Entre tradição e modernidade, entre local e global, entre sagrado e profano, entre rito e liberdade. Entre o que fomos, o que somos e o que queremos ser.
O que nos faz tão móveis — tão plásticos — enquanto sociedade? A televisão? A nossa modalidade educativa massiva de meio período? A nossa pouca memória? O que nos faz tão móveis que voltamos a cair nos mesmos problemas, nos mesmos dilemas, nos mesmos embates? O que nos faz tão móveis a ponto de parecer que, em vez de andar para frente, retrocedemos?
Nenhuma dessas questões têm respostas binárias. O Brasil é diverso: plural e massificado, simples e complexo, humano e desumano, pobre e rico. Estamos um pouco perdidos, é verdade. Queremos conhecer o futuro, mas desconhecemos o passado e o presente. Temos algumas ideias, que motivam, que entristecem, que preenchem — menos do que talvez gostaríamos — um sentido possível. Não é fácil pensar o coletivo. Não é fácil pensar o individual. Tateamos. Tropeçamos. Descobrimos. E redescobrimos. Nossa terra, nossos laços, nossas feridas, nossas histórias, nossas vozes.

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