
Vice is broke ou o obituário do jornalismo de propaganda
Autêntica e inusitada, empresa reformulou o jornalismo tradicional, mas vendeu propaganda como informação.
Dirigido por Eddie Huang (ex-apresentador do canal Viceland), o documentário Vice Is Broke tenta explicar como uma revista anárquica que batia orgulhosamente no ritmo do próprio diapasão virou um império digital avaliado em bilhões — e como tudo isso ruiu em poucos anos.
É um filme de insider, feito por quem viveu a festa e depois ajudou a apagar a luz. Huang reconstrói um pouco da linguagem que fez a Vice parecer inevitável entre os anos 2000 e 2010, com ritmo rápido, humor cáustico, culto à autenticidade e uma lógica geral de “faça você mesmo”. O resultado funciona como cápsula de memória para quem passou pela empresa e por quem foi impactado por aquela era, direta ou indiretamente. Mas, sobretudo, funciona como porta de entrada para entender o zeitgeist que a Vice ajudou a definir. Entre as passagens mais eficazes (são poucas), o filme relembra momentos em que a marca virou tópico de discussão por estar onde “ninguém” estava, como a ida de Dennis Rodman à Coreia do Norte, exibida pela série da Vice na HBO.
Nessas, há momentos divertidos e nostálgicos, mas há também, intencional ou não, uma herança metalinguística dos limites do objeto que retrata. Huang não pensa duas vezes antes de se colocar na frente da câmera e de se fazer de personagem daquela história, chegando a, em determinado momento, se vestir de Guy Fieri para fazer uma entrevista (que seria uma das melhores do filme, caso o foco não estivesse dividido com aquele constrangedor “Guy Fieri asiático”, que em nada contribui). Essas escolhas diluem a análise sobre as causas do colapso da Vice e o filme acaba sendo mais apaixonado que investigativo, mais memória pessoal que diagnóstico estrutural.
E tudo bem. Talvez aí resida o ponto central: Vice Is Broke é, talvez sem querer, um espelho que cabe bem à Vice, uma empresa que nunca se preocupou em oferecer jornalismo tradicional, mas sim em criar uma estética e um espírito de comunicação antissistema. A força da Vice, claro, não estava na verificação metódica, mas nas abordagens pouco usuais, no gesto de “estar lá”, de filmar o que parecia inatingível, de vender autenticidade mesmo quando essa autenticidade era um produto embalado. Algumas dessas características até viraram condenáveis clichês: a câmera no carona do traficante, na trincheira do miliciano, no after do artista… Esse jornalismo performático, às vezes brilhante e muitas vezes raso (inclusive criticado no filme), fez de “estar perto” um sinônimo de “entender”. A fórmula era potente para atrair jovens que não viam a própria vida nos jornais tradicionais, mas também confundia experiência com evidência.
Se melhor ou pior, pouco importava. O modelo editorial, afinal, priorizava o impacto e a fricção. Não é por acaso que, no auge da Vice, redações clássicas viam, assustadas e indefesas, um gigante emergindo do oceano. Vice Is Broke capta essa estética e o período em que ela reinou. Por isso mesmo, ajuda a identificar seus limites.
O documentário dá destaque aos criadores Shane Smith e Gavin McInnes, dois personagens que, em seus estilos distintos, ajudaram a definir o DNA da empresa. Smith, com sua postura de vendedor nato, soube transformar rebeldia em discurso de negócio, convencendo investidores, anunciantes e governos de que a Vice era “a voz de uma geração”. McInnes, por sua vez, encarnava a persona provocadora, performática, que explorava a fronteira entre ironia e cinismo — um jogo que mais tarde o levaria a se associar a discursos de extrema direita e ao famigerado grupo Proud Boys. Essa combinação de carisma empreendedor e insolência performática moldou a cultura da empresa, que sempre transitou entre o hypado e o perigoso. O ambiente, pelo que se tira do documentário, era tóxico e os caminhos que cada um tomou (McInnes saiu cedo, em 2008, destronado por Smith) dão indícios disso.
O que fez da Vice a Vice foi se perdendo ao longo do caminho, e isso era evidente a todos.
O caso da Arábia Saudita retratado no filme é exemplar. Em 2018, após o assassinato de Jamal Khashoggi, vieram à tona contratos e projetos de conteúdo patrocinado ligados ao reino: entre eles, um documentário turístico que, sob o pretexto de registrar corridas de camelos como patrimônio cultural, funcionava como peça de propaganda. A mesma máquina que se vendia como porta-voz do incômodo alugava sua aura para rebrandings governamentais. E isso, vale lembrar, não se limita à Vice. A normalização da publicidade nativa embaralhou fronteiras editoriais em todo o setor. Quando a entrega ao cliente se torna a métrica suprema, a audiência deixa de ser cidadã e passa a ser público-alvo; e o jornalista, de mediador crítico, é rebaixado a operador de brand safety. O dano, nesse ponto, já não é apenas reputacional, é cognitivo: o leitor perde o norte sobre o que é jornalismo e o que é publicidade.
A ascensão financeira da Vice acompanhou a exuberância irracional do mercado de mídia digital, até chegar a US$ 5,7–6 bilhões de valor de mercado. Em 2023, porém, veio o decreto do castelo desabado com um pedido de falência e, meses depois, a venda a credores liderados pela Fortress. Em 2024, a empresa deixou de publicar no Vice.com e demitiu centenas. A figura de Ícaro, por mais batida que seja, parece certeira: Shane Smith, querendo o sol, foi direcionando o império em direção ao colapso, tanto criativamente quanto economicamente.
Vice Is Broke, do seu jeito mais memória de guerra do que investigação forense, não é definitivo, mas faz suscitar questionamentos.
O que é “estar lá” sem método? O jornalismo de imersão tem valor — gera pistas, revela zonas cinzentas. Mas estar perto não substitui apurar, confrontar, checar, ter algo relevante a dizer (e não somente polemizar).
Como separar claramente jornalismo e publicidade? Se alguém paga, é realmente jornalismo? A fronteira tem que ser visível, legível e auditável. Isso envolve rotulagem explícita, governança (quem aprova, como aprova, quem pode vetar), walls organizacionais e transparência ex-post (inclusive com relatórios públicos). Se um veículo vender acesso como produto, que assuma o risco reputacional — e que o público possa ver onde a linha está.
Qual é a métrica que importa? Se a régua editorial for tempo visto no feed de terceiros, o jornalismo, que deve noticiar, seguirá refém de métricas opacas e mudanças de algoritmo. Voltar a medir impacto público, e não apenas views, demanda paciência, dados próprios, assinatura (ou outra forma de relação direta) e independência de curto prazo. A evidência empírica de que KPIs de plataforma podem ser ilusórios está posta.
A Vice foi escola tanto de talento real quanto de mau exemplo. Mostrou que dá para criar uma linguagem de comunicação potente e popular para além do jornalismo que o mundo já conhecia, aproximando novos públicos e furando bolhas. E mostrou também, na mesma medida, como tudo isso pode ser cooptado por objetivos comerciais quando a governança é frouxa e o método vira adereço.
Quantas startups de mídia não repetem o mesmo roteiro? Quantas não confundem alcance com credibilidade, audiência com comunidade, e contratos publicitários com sustentabilidade jornalística? Se a Vice ensinou alguma coisa, é que vender informação como mercadoria é um negócio lucrativo — até deixar de ser.
Como lembra Dave 1, personagem do filme, “coolness” não é um recurso renovável. Uma vez vendido, não volta mais. O jornalismo, ao contrário, se renova, desde que não se esqueça de por que existe.
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