
Ventos, relâmpagos e virtudes: uma conversa com Marcos Martinho
Marcos Martinho é um renomado professor de Estudos Clássicos da Universidade de São Paulo, onde leciona sobre retórica, poética, mitografia e outros temas. Nesta entrevista, concedida a Júlia de Carvalho Hansen e a Gaya de Castro Cunha, ele aborda o mito na cultura grega antiga, tratando de sua definição, circulação, funções sociais e religiosas, bem como de sua recepção moderna nos estudos da psicanálise.
Como poderíamos definir mito a partir da cultura grega antiga?
Em muitas sociedades antigas, o mito foi a história de uma época anterior, em que humanos conviviam com seres sobre-humanos. Na sociedade grega antiga, os humanos conviviam com os deuses, que eram imortais e também mais fortes e hábeis. Os deuses podiam gerar outros deuses por si mesmos ou por união amorosa. Além disso, da união amorosa de um deus e um humano, nasceram semideuses ou heróis, que eram mortais, mas mais fortes e hábeis.
Os deuses intervinham nas ações humanas, podendo favorecer e estorvar. Por exemplo, Atena propiciou o encontro de Nausícaa com Odisseu, e Posidon perturbou a navegação de Odisseu de retorno para casa. A razão para a intervenção divina podia ser a punição de uma má ação. A soberba, em particular, não era tolerada pelos deuses, mas estes não podiam tudo, ou melhor, cada deus podia algo que era próprio dele, e não dos outros. Assim, ao intervir nas ações humanas, cada deus intervinha no aspecto da vida que era próprio a ele. Por exemplo, Atena incutiu prudência em Aquiles, impedindo que ele degolasse Agamêmnon, e Afrodite infundiu encanto em Páris, permitindo que ele seduzisse Helena.
Os heróis, por sua vez, empreenderam façanhas, seja individualmente, seja em conjunto. Neste caso, a façanha podia ser bélica, como foi a Guerra de Troia.
Como os mitos circularam no mundo grego antigo?
Primeiro oralmente, na recitação dos aedos, e depois concomitantemente por escrito nas edições dos gramáticos. De qualquer modo, eles foram transmitidos em narrações elaboradas por indivíduos especializados, quer dizer, por aedos, cantores e dramaturgos, em tipos codificados de discurso e em formas artificiais de linguagem.
Por exemplo, a Ilíada e a Odisseia teriam sido elaboradas ao longo de gerações de aedos, tendo sido atribuídas a um aedo de nome Homero (séc. VIII a.C.). A linguagem é formular e versificada, num dialeto que é resultado de uma mistura de dialetos gregos. A matéria é composta por episódios do cerco de Troia, tendo como escopo tecer o elogio dos heróis que tomaram parte naquele cerco. A Teogonia de Hesíodo (séc. VIII a.C.), por sua vez, expõe a genealogia dos deuses, ao mesmo tempo que narra a sucessão dos deuses que reinaram sobre o mundo: de Céu, a que sucedeu Crono, a que sucedeu Zeus, que desde então governa o mundo.
Posteriormente, essas narrações foram resumidas por escrito, e aí os resumos foram reunidos em coleções, as quais podemos considerar ancestrais do que são os manuais modernos de mitologia grega.
Quais eram as funções sociais e religiosas do mito entre os gregos antigos?
Embora fosse a história de uma época anterior, o mito servia de exemplo à conduta moral e religiosa dos que viveram depois. Na Ilíada, Aquiles aceitou morrer jovem para empreender ação que lhe valeria glória imortal: matar Héctor. Ao mesmo tempo, insultou o cadáver deste, aborrecendo os deuses. Assim, os mitos narrados na Ilíada ofereciam ao público o exemplo do que fazer, isto é, a bravura de Aquiles, e também do que não fazer, isto é, a fúria ímpia do mesmo Aquiles.
Dentre os valores religiosos, o cuidado com os mortos é bem ilustrado na Ilíada quando os guerreiros de um lado e do outro fazem trégua para recolher os corpos dos que caíram em combate, cremando-os e honrando. Dos valores sociais, o cuidado com a cidade e a família é igualmente bem ilustrado quando Héctor repreende o irmão, Páris, porque as ações deste infligiram grande vergonha à cidade, ao rei, ao povo. Ou ainda quando Héctor estende os braços ao filho de colo, Astianacte, e este se assusta com o brilho do elmo do pai, pondo-se a chorar, de modo que Héctor ri, depõe o elmo sobre o chão e toma o filho nos braços.
Assim, os mitos da Ilíada davam exemplo tanto da piedade religiosa como da virtude política e social ao público de seu tempo.
Mas as crenças religiosas e as convenções sociais não mudavam com o tempo? E, se mudavam, o que acontecia? Os mitos perdiam sua função? Ou ganhavam novas funções?
Na verdade, as cidades gregas antigas eram como nações independentes. Cada uma tinha regime político próprio, leis, governantes, de modo que o mesmo grego que era cidadão numa cidade era estrangeiro noutra. No entanto, alguns valores religiosos e sociais eram igualmente cultivados em diferentes cidades. Por exemplo, aqueles do cuidado com os mortos, com a cidade e com a família, que a Ilíada ilustrava tão bem. Por isso, a Ilíada e também a Odisséia e a Teogonia foram bem recebidas em muitas cidades, justamente porque contribuíam para a conservação dos valores tradicionais. Isso, bem entendido, junto ao grande público.
Alguns círculos de estudiosos, porém, passaram a rever muitas das crenças e dos valores tradicionais a partir do séc. VI a.C. Esses estudiosos investigaram as causas dos fenômenos naturais, propondo explicações que confrontavam as crenças tradicionais. Por exemplo, na Odisseia, Zeus movimenta os ventos, ajunta as nuvens, produz uma tempestade, dispara um raio, a fim de quebrar a nau de Odisseu, porque os companheiros deste comeram as vacas do deus Sol. Em outras palavras, segundo a crença tradicional, a causa dos eventos climáticos era divina e tinha um propósito, que era punir os que aborrecem os deuses.
Diferentemente disso, Anaxímenes de Mileto (séc. VI a.C.) explicava que, quando o ar se condensa, são geradas as nuvens; quando o ar condensado é posto em movimento, são gerados os ventos; e quando os ventos cindem as nuvens, é gerado o relâmpago. Em outras palavras, a causa dos eventos climáticos era mecânica, por depender dos elementos da natureza — ar, terra, fogo, água —, e era desprovida de propósito.
Mas então esses estudiosos da natureza contestavam o poder dos deuses? Ou questionavam a própria existência deles?
Não exatamente. Na verdade, não contestavam a existência dos deuses, mas a concepção tradicional de divindade. Por exemplo, na Ilíada, Odisseia e Teogonia, diz-se que Atena tem olhos glaucos, Hera tem braços brancos, Tétide tem pés de prata. Em outras palavras, os deuses têm aspecto semelhante ao humano, na medida em que têm olhos, braços, pés. Por isso, Xenófanes de Colofon (séculos. VI e V a.C.) acusou tal concepção de imaginar os deuses conforme os humanos, de modo que, se os cavalos pudessem, diriam que os deuses são como eles – bem entendido, que têm crina, abanam o rabo, trotam sobre quatro patas. Ou, ainda, acusou-a de imaginar os deuses não só como humanos, mas como gregos, porque os trácios, ao contrário, dizem que os deuses têm olhos azuis e cabelos ruivos. Mais que o semblante, porém, Xenófanes acusou tal concepção de imaginar a índole dos deuses conforme a humana, atribuindo àqueles o que é próprio dos humanos, a saber: roubar, cometer adultério, enganar uns aos outros. De fato, na Odisseia, o aedo Demódoco conta que, na ausência do marido Hefesto, a esposa Afrodite recebia o amante Ares no leito conjugal. Na Teogonia, conta-se que Prometeu enganou Zeus, roubando-lhe o fogo.
Nas sociedades modernas, porém, as crenças e os costumes são outros. Ainda assim, os mitos das sociedades gregas antigas continuaram a despertar o interesse de muitos — por exemplo, dos pensadores da psicanálise, como Freud e Jung. Por que você acha que estes mobilizaram os mitos gregos para elaborar suas teorias?
De fato, nos tempos modernos, muitos interessaram-se pelo mito grego, não só psicanalistas, mas também antropólogos, historiadores, filósofos, e cada um, bem entendido, por suas próprias razões.
Quanto a Freud e Jung, é importante notar uma diferença, pois, ao passo que Jung, nas Transformações e símbolos da libido, vai não só ao mito grego, mas ao sumério, persa, indiano, egípcio, germânico, nórdico, Freud, na Interpretação dos sonhos, vai principalmente ao mito grego, e a um em particular: ao mito de Édipo.
Jung, no prefácio à segunda edição das Transformações…, diz que o mito é o que está em toda parte, que está sempre, em que todos acreditam, acrescentando que só pode captar o sentido do mito quem vive com ele, que assim pode não perguntar o que é o mito, mas perguntar a si mesmo o que é o mito que ele próprio vive. Freud, por sua vez, na Contribuição à história do movimento psicanalítico, ao comentar como a psicanálise era aplicada a diversas disciplinas, como os estudos de mitologia, remete aos estudos de Otto Rank, os quais considera definitivos nessa matéria.
No Mito do nascimento do herói, Rank vai ao mito babilônio, egípcio, indiano, grego, islandês, anglo-saxão, flamengo, anglo-lombardo, a fim de examinar como se narra o nascimento do herói em cada um. Apesar da diversidade das versões, Rank nota um conjunto de traços comuns a estas, que compõem um fundamento típico, que ele identifica com o “romance familiar”.
Freud, Jung e Rank entenderam o mito (dos gregos, bem como de outros) como restos deformados de fantasias correspondentes a desejos tanto do indivíduo como de povos inteiros. É interessante lembrar que os gregos antigos conceberam e desenvolveram dois modos de interpretar os mitos: um de natureza filosófica e outro de natureza historiográfica. O método da interpretação historiográfica supunha justamente que o mito era o resultado da deformação de uma história anterior. Mas isso é matéria para outra entrevista…
Marcos Martinho é professor do programa de pós-graduação em Letras Clássicas da USP. Pesquisador PQ do CNPq, especialista em mitografia grega e romana.

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