O que faz de nós humanos? Serão os sentimentos e as emoções a expressão máxima de humanidade? Para além da racionalidade, somos capazes de sentir. Vivemos as primaveras, desejamos tomar banho de mar no verão, ou um chocolate quente no inverno. Estabelecemos relações com aqueles que queremos por perto, e também com aqueles que não queremos. Somos marcados pelos sinais do tempo, guardamos memórias (sejam elas quais forem) e experimentamos a solidão, o ápice do sentimentalismo humano que jamais poderá ser experimentado por qualquer inteligência artificial.
Muitas são as reflexões acerca da vida moderna — o que explica o grande número de espectadores das séries britânicas Black Mirror e Humans, assim como do sensível e premiado filme Ela, de Spike Jonze. Queremos saber até onde somos capazes de chegar no modo como nos relacionamos com a tecnologia e seus desdobramentos em nossa vida. O que diria Freud, a partir de seus estudos sobre a eterna “incompletude do Eu”, diante dos decorrentes avanços tecnológicos? Os robôs se tornarão nossos companheiros de metrô? Sistemas operacionais serão bons conselheiros de madrugada? Em 2015, a loja de departamento Mitsukoshi, em Tóquio, recebeu uma funcionária extremamente eficiente, mas com uma peculiaridade incomum. Seu nome era Aiko Chihira, recém-chegada de Kawasaki, uma cidade ao sul da capital japonesa.
Três dias após sua chegada à loja, em uma quinta-feira chuvosa, muitos curiosos pararam por alguns minutos para observar Chihira exercendo sua função. A maioria pareceu silenciosamente instigada e impressionada com seus traços e seus detalhes, com a coloração de seu rosto e seus finos contornos naturais, além da textura de sua pele, que mais parecia um pêssego. Mas em pouco tempo o interesse se tornava uma repulsa e os clientes viravam-se para trás e procuravam se afastar de Chihira.
O que distinguia Chihira de seus outros companheiros de serviço, além de sua inaptidão interpessoal e de seu hall de habilidades meramente curriculares, era sua aparência humanoide. Vestida em um quimono com tradicionais sandálias japonesas, Chihira foi criada para se assemelhar a uma mulher japonesa de 30 anos.
Os detalhes em seu rosto e nas mãos eram impecáveis. De longe, certamente seria possível confundi-la com um humano. Mas, assim que começava a se mover, ela era rapidamente identificada como uma máquina. Suas poucas dezenas de motores tornavam seus movimentos distintamente mecânicos. Sua cabeça e seu tronco giravam para a direita e a esquerda (ela também podia se curvar) e seus braços pareciam deslizar em movimentos pontuais e definidos.
Funcionária incansável, Chihira recitava um discurso preciso e bastante informativo sobre Mitsukoshi, a imensa loja de departamento. No entanto, de acordo com os outros funcionários, ela tinha um grande defeito: era incapaz de escutar.
De fato, Chihira era fluente em japonês, dominava inclusive a linguagem de libras nesse idioma, e ainda assim as perguntas dos clientes eram ignoradas. Na realidade, seus ouvidos, habilidosamente esculpidos como os de humanos, não respondiam. Ainda que soubesse falar e cantar em mais de uma língua, Aiko Chihira era um robô humanoide de tamanho humano real, mas incapaz de conversar — o que ocasionou sua mudança de departamento pouco tempo depois.
Chihira foi transferida para uma vitrine no sétimo andar da loja. Só os clientes que tinham paciência de passear até o último andar paravam para escutar Chihira tagarelar lá em cima.
A funcionária ainda não estava pronta para assumir os empregos das bio-unidades ao redor dela. Pelo contrário, ela e seus congêneres ainda geram muitos empregos para programadores, engenheiros, designers e guias ou acompanhantes humanos.
Robôs trabalhando ao lado de pessoas não são exatamente uma novidade. Em nossa realidade paralela/virtual, conversamos diariamente com máquinas, já estamos familiarizados com isso. Sabemos da importância dos avanços tecnológicos e rapidamente absorvemos tais avanços, que sempre nos confortam com algum tipo de facilidade. Como não ser grato a Siri, fiel escudeira e sempre disposta a nos atender?
Ocorre que a inquietude humana, tão presente em nossa essência, desafia cientistas do campo da robótica a buscarem a perfeição na reprodução (tecnológica) do ser humano. Os robôs contemporâneos ganharam aparências realistas e articulações corporais muito parecidas às do homem mortal.
Certamente o caminho ainda parece longo até que os primos de “carne e osso” do C-3PO (icônico personagem androide de Star Wars) sejam confundidos com um humano vivo em ação. No meio desse caminho existe um vale, muito observado e discutido por cientistas, que é o chamado Uncanny Valley (Vale da Estranheza).
Em 1970, o cientista japonês Masahiro Mori propôs uma teoria que identificava um aumento da nossa repulsa por robôs à medida que eles se tornam mais semelhantes aos humanos. Qualquer coisa com uma aparência altamente humana pode estar sujeita ao efeito do “Vale da estranheza”, mas os exemplos mais comuns são androides, personagens de jogos de computador e bonecos de vida.
Embora o efeito seja fácil de descrever, é muito difícil pesquisar um conceito tão circular e subjetivo. Cientistas e sociólogos estão envolvidos em um debate constante sobre as causas do Vale da Estranheza. Três conclusões sobre o efeito são perceptíveis ao entrarmos em contato com pesquisas sobre o assunto:
1. O efeito do Vale da Estranheza pode ocorrer no limite em que algo se move de uma categoria para outra — neste caso, entre robôs e humanos. As pesquisadoras Christine Looser e Thalia Wheatley olharam rostos de manequins que se transformavam em rostos humanos e encontraram o efeito de repulsa no momento em que o rosto inanimado começava a parecer vivo.
2. A sensação de repulsa está relacionada à nossa crença de que criaturas quase humanas possuem uma mente, como nós. Um estudo dos cientistas Kurt Gray e Daniel Wegner descobriu que os robôs causavam estranheza apenas quando as pessoas pensavam que eles tinham, assim como nós, a capacidade de sentir e experimentar as coisas.
3. O fenômeno do Vale da Estranheza ocorre devido a um desajuste em aspectos da aparência e/ou comportamento do robô, como a sincronização e a velocidade da fala e das expressões faciais. Ao reagir a surpresas, os humanoides mostram reação somente na parte inferior do rosto (não na parte superior), o que lembra o padrão de comportamento expressivo exibido por humanos com traços psicopáticos.
Segundo o cientista Andrew Olney, o contato com robôs pode parecer natural em um primeiro momento, mas os instintos básicos nos afastarão deles. Um androide pode ser quase idêntico a uma pessoa, porém um simples aperto de mão é suficiente para que alguém perceba que o “suposto humano” tem mão de borracha.
Refletir sobre a vida moderna se torna um exercício perturbador quando percebemos nossos próprios comportamentos robóticos e alarmantes, que cabem muito bem no universo ficcional mas, ao mesmo tempo, são muito próximos da realidade em que vivemos: passamos horas usufruindo de redes sociais, entramos em desespero toda vez que nos sentimos desconectados quando acaba a bateria de nossos celulares ou qualquer outro gadget tecnológico, construímos relações virtuais. Criamos máquinas e, às vezes, sem perceber, reproduzimos seus mecanismos. Somos vítimas das nossas próprias invenções.
Enquanto cientistas dedicam seu tempo à missão de recriar a vida humana, alguns humanos exercem condutas de máquinas e, assim, nos encontramos diante de um enorme paradoxo. “Pensamos muito e sentimos pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, precisamos de afeição e doçura”, alertava Charles Chaplin em O Grande Ditador (1940).
Dentro do Vale da Estranheza habitam os nossos mais profundos sentimentos de inconformismo em relação à reprodução da existência humana pela tecnologia. Gostamos do que é de verdade. Chamemos, então, tal fenômeno de Vale da Esperança.
O Vale da Estranheza
por Allexia Galvão