
O espelho encantado de Gabriel Pessagno
“Eu queria entrar por um buraco de cobra / pra ver o que há dentro do mundo.”
— Raul Bopp, Cobra Norato
Em uma das obras nesta edição, Gabriel Pessagno nos oferece a imagem de um encontro entre forças encantadas. No centro, uma Iara e uma serpente se entreolham. A mulher das águas, híbrido entre o humano e o aquático, apoia-se sobre uma pedra. Diante dela, uma serpente — metade submersa, metade desperta — ergue o corpo sinuoso, enquanto a Iara sustenta, e nos oferece, um pequeno espelho: superfície de tensão e mistério por meio do qual ela encara a serpente, e onde também somos convidados a nos ver refletidos.

O cenário é noturno, amazônico, mítico. “Noite enfeitada de lua / com cachos de estrelas”, como no verso de Raul Bopp em Cobra Norato, poema de 1931 dedicado à pintora Tarsila do Amaral, que encabeça este texto. Essa “noite enfeitada” é o verdadeiro território da imagem — espaço do encantamento, ponto de encontro entre o mundo humano e o encantado.
Essa estrutura mítica, o olhar entre o ser das águas e o ser da terra mediado pelo reflexo do espelho, reverbera por todo o trabalho de Gabriel Pessagno. Em sua obra, o artista borda fragmentos para tramar uma nova realidade. Seu gesto é o de pôr em contato imagens de origens díspares, oriundas de bestiários renascentistas, de cenas coloniais de artistas viajantes, recortes de jornal, mitos indígenas e memórias pessoais, tecendo uma narrativa feita de aparições, remendos e fantasmas. Assim como a Iara encara a serpente por meio do espelho, Pessagno encara o inconsciente brasileiro com o fio virtuosístico da tradição europeia, refletindo e reconfigurando o que encontra de uma memória coletiva.

A escolha da técnica é, aqui, central, e não mero capricho. Herdeiro de uma tradição manual e disciplinada, Pessagno utiliza o bordado como método de reconfiguração do olhar europeu. Na técnica, reflete-se a Europa e a colonização; nas imagens, o Brasil. Entre ambas, forma-se um espelho deformante em que as identidades se confundem e se reconhecem. Como na imagem da sereia, o rosto não se mostra, porque não há um rosto unificado da nação, apenas fragmentos costurados, pedaços de mitos e ruínas visuais.
A técnica torna-se, assim, superfície de contenção sobre a qual emergem figuras indóceis, híbridas, encantadas e violentas. Suas imagens formam um arquivo de sonhos coloniais recompostos, como quem faz a arqueologia de um delírio.

O encantamento, no trabalho de Pessagno, não é fetiche, mas sim método. Diante da pressa, da desmaterialização digital e do consumo superficial da imagem, seu bordado exige demora e atenção. Ele emerge do embotamento dos limites, da transgressão controlada. Ele é o espaço simbólico no qual Pessagno sonha e rememora o Brasil. Cada imagem é uma volta do mesmo trauma, reelaborado em forma de beleza. Entre uma cobra e uma estrela, entre um soldado e um xamã, há uma serenidade: o gesto do bordador que mantém firme a linha e não se apressa. Essa lentidão é o que permite olhar a violência. Não superá-la, mas transformá-la em figura.
Mas nem sempre o feitiço faz efeito: há momentos em que o sistema “dá zebra”. Esses bugs simbólicos são parte do processo e do sentido. Podem surgir nos anacronismos incontrolados, quando um mito indígena se cruza com uma cena do século XIX, nas sobreposições densas que confundem a leitura, na ausência deliberada de rostos que evita o individual, mas arrisca o distanciamento. Há ainda a tênue fronteira entre denúncia e fetiche, quando a violência histórica ameaça tornar-se ornamento.


Essas falhas não invalidam o gesto. Ao contrário, são suas fissuras iluminadas. Elas revelam onde o bordado histórico se desfaz, onde a costura da narrativa nacional não segura mais. Pessagno não tenta corrigir as falhas; ele as amplia, as repete, as ilumina com o brilho dos fios. A violência — escravidão, extermínio, pilhagem — aparece lado a lado com o encantamento: a mata luminosa, o rio vivo, a aparição mítica. Em nossos tempos, tão pouco inclinados à demora, ao olhar prolongado, ao detalhe revelador, o encantamento torna-se uma forma de resistência. Fazer quem vê desacelerar e mergulhar nesse tecido simbólico é, hoje, quase um milagre.

Quando contemplamos suas obras, lembramos que o Brasil é um tecido inacabado, um mosaico de vozes e ruínas. E que o verdadeiro feitiço é tornar visíveis as escamas da serpente, as ondas da água, a costura da história, para que possamos olhar, e talvez escutar, o que nos habita por dentro. Assim, Pessagno é a própria sereia diante da serpente — ele se coloca na superfície das águas da história e segura um espelho diante do que emerge das profundezas: os mitos, os massacres, os colonizadores e os encantados. Ele não recua, mas também não encara diretamente. Seu trabalho é uma análise visual da cultura brasileira, feita de fios, de espelhos, de fragmentos de memória e do reconhecimento de que somos o que nossas imagens foram capazes de imaginar de nós.
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