Skip to content
Revista Amarello
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Entrar
  • Newsletter
  • Sair

Busca

  • Loja
  • Assine
  • Encontre
#54EncantoSociedade

Em busca da copa da castanheira: direito e encantamento nas lutas por justeza 

por Ciani Sueli das Neves

Chico da Silva, Sem título (1974).

(Exclusivo da Amarello 54 edição digital)

Em agosto de 2025, numa oficina sobre direito em pretuguês conduzida pela professora de direito constitucional da PUC-Rio Thula Pires, inúmeras angústias e inquietações pareceram ganhar um ponto comum com o exemplo da copa da castanheira. Tratava-se de uma discussão intensa, numa rara tarde fria do Rio de Janeiro, quando uma estudante da Universidade Federal do Pará trouxe a referência que inicia este texto. A conversa era em torno de como compreender o direito sob uma perspectiva não colonial e fazê-lo responder aos anseios sociais que se dão em torno de sua aplicação com base em uma produção científico-jurídica que respeite os limites éticos e reconheça e valorize os conhecimentos comunitários e tradicionais como fazer científico. Samara, a estudante paraense, pediu a palavra e começou a relatar a experiência de uma liderança indígena de uma das aldeias de seu estado. Ocorre que a mulher citada era a primeira pessoa indígena daquela aldeia a acessar a universidade, pelo curso de Direito — área do conhecimento espinhosa e de intensas disputas para os grupos vulnerabilizados no Brasil —, e ela deveria cumprir a tarefa de retornar ao seu território para fazer o repasse dos conhecimentos adquiridos na instituição. O compromisso se tornou uma grande dor de cabeça a partir do momento em que a moça se deparou com a teoria da hierarquia das normas jurídicas, usualmente representada nos cursos de graduação em direito pela chamada “pirâmide de Kelsen”. O uso de tal imagem se dá com o intuito de viabilizar a estrutura do ordenamento jurídico formado por uma lei superior, que decorre da norma hipotética fundamental e corresponde ao topo da pirâmide, seguida de normas infraconstitucionais, que são normas que estão hierarquicamente abaixo da Constituição e têm a função de regulamentar e detalhar dispositivos constitucionais; na base da pirâmide estão as normas infralegais, que correspondem àquelas que se encontram abaixo da Constituição e das leis, cuja função é meramente administrativa, posto seu caráter regulamentar. Dito dessa forma, pode parecer algo de compreensão simples, mas a grande preocupação da estudante indígena era com como ela iria explicar isso para o seu povo. Empenhada em cumprir a missão que lhe foi dada, ela seguiu conversando com outras pessoas indígenas e com as mais velhas e os mais velhos de sua comunidade, até que, depois de muito explicar tal hierarquia, alguém sugeriu a ela que, ao invés de usar a pirâmide como referência, já que pouquíssimas pessoas compreenderiam a menção às maravilhas que identificam de imediato o Egito, ela usasse a castanheira, pois a copa dessa árvore é tão alta que ninguém consegue alcançá-la, mas todas as pessoas que se relacionam com a floresta sabem que ela é fundamental para a manutenção do equilíbrio florestal. O exemplo trazido por Samara parecia resolver dois dilemas: o do repasse do conhecimento jurídico no território indígena em questão e o das angústias das pessoas que participavam da oficina em questão, que pareciam ter ido até ela ansiando por uma solução para o desencantamento com o direito.  

O direito segue sendo ensinado nas faculdades e aplicado no cotidiano, permanecendo como um fator de desencantamento do mundo, posto que tanto a metodologia bacharelesca, que a cada dia mais se ocupa em formar indivíduos preocupados com a aprovação no concurso mais rentável e o maior prestígio político, quanto a aplicabilidade das leis nas relações sociais tende a reproduzir condições de desigualdade. Em sociedades constituídas a partir do colonialismo, essa percepção gera impactos danosos significativos para a vida dos sujeitos em particular e enquanto comunidade. Luiz Rufino, em Pedagogia das encruzilhadas: exu como educação, já nos ensinou que o colonialismo é um projeto de morte, operando na produção sistemática do desvio ontológico e, assim, estendendo-se, ampliando a descredibilidade existencial/epistemológica de povos não brancos ao mesmo tempo em que produz a credibilidade do Ocidente sustentada pelo epistemicídio. A materialização do colonialismo como projeto de dominação é viabilizada pela homogeneização, que institui a negação de outras formas, baseada na noção unilinear da história e no caráter absoluto e cientificista do pensamento ocidental, para lembrar o já dito por Sérgio São Bernardo. Entretanto, lembremos que a vida é dialética, e exatamente por isso confronta o projeto de dominação colonial com o drible das frestas próprios daqueles a quem é imposta dominação pelo controle e pela escassez. Seria, assim, como diz Danilo Marcolino em Encantamento do direito pela filosofia popular brasileira: por uma teoria constitucional popular, lançar mão do “reconhecimento de múltiplas subjetividades, em vez de uma subjetividade única na construção do sujeito de direito, adquire um peso significativo na luta contra a normatividade e a heteronormatividade brancas, bem como suas consequências”. É importante entender que “as diferenças, de maneira invariável, são relacionais, não inatas, e é imperativo compreender que a integralidade e a coletividade resultam de atos conscientes de vontade e criatividade, não de uma descoberta passiva”. Esse talvez seja o maior desafio do direito, compreender as diversas formas de ser-fazer dos sujeitos a partir da perspectiva de reconhecimento destes enquanto sujeitos de direitos.  

Certo é que não se trata de uma tarefa fácil, pois, para que se torne aplicável de forma ampla, ela implica abrir mão de vantagens construídas ao longo da história, além do compromisso em reparar os anos de injustiças perpetradas sob legitimação do escopo jurídico. Porém, sabemos que desafios recebem esse nome exatamente por não constituírem tarefas fáceis, mas que precisam ser feitas. Dessa maneira, retomar as lições ensinadas por Dora Lúcia Bertúlio é um caminho ainda atual, no sentido de destituir o direito do papel de desencantamento que lhe foi atribuído pelo projeto colonial de mortandade. Para tanto, é necessário primeiro admitir o papel sócio-histórico que raça, gênero e classe ocupam nas relações sociais como um todo e de que modo delineiam os contornos políticos do sistema de justiça. Ora, raça, gênero e classe compreendem eixos estruturantes da experiência social e política nas Américas, implicando a organização de todos os setores dessas sociedades a partir dos pactos sociais, a que autores como Charles Mills e Carole Pateman chamam, respectivamente, de contrato racial e contrato sexual, em razão de a implementação dos lugares sociais serem reservados tomando por base a raça e o sexo. Prestemos atenção, portanto, em como esses fatores se manifestam ao longo do tempo na sociedade brasileira e na necessidade de se levantar o véu de Ísis do sistema de justiça no tocante aos aspectos raciais e de gênero. Dora Lúcia de Lima Bertúlio, em Direito e relações raciais: uma introdução ao racismo, já na década de 1990, envidou esforços incansáveis na busca por elucidar o sistema de justiça brasileiro, com enfoque em como o racismo permanece incólume nesse ambiente, não só definindo decisões judiciais como moldando elaboração legislativa, além de favorecer a desproteção das pessoas negras através da omissão estatal em protegê-las do racismo e/ou criminalizá-las. No dizer da procuradora paranaense, “a sutileza do racismo brasileiro, que encarcera a quase totalidade da população negra brasileira em submundos social, intelectual, político e econômico, tem seu grande colaborador no discurso jurídico que, enquanto proclama igualdade, justiça e liberdade, convive em cumplicidade e conivência com atos de racismo quer individuais, quer institucionais. Sua estrutura reguladora, repressiva e judiciária, paradoxalmente cria mecanismo proibitivo de atos de preconceito e racismo e implementa a impunidade dos agentes e a destruição das vítimas, especialmente pela ação da polícia”. Seguidos da ação do Estado, que se desenvolve pela destruição das vítimas, seja na omissão em protegê-las das violências raciais, seja na sua criminalização, adota-se também o silêncio como tática de bloqueio da discussão racial. Sendo assim, o sistema de justiça cria mecanismos de silenciamento de como o racismo opera em seu interior, de modo a não admitir questionamentos raciais, ocasionando, assim, a desnecessidade de se falar de tal assunto.  

Tais bloqueios são meios de sustentação do pacto narcísico da branquitude, que Cida Bento, em O pacto da branquitude, explica como um pacto, ainda que silencioso, que garante a proteção entre pessoas brancas nos diversos espaços de poder. O sistema de justiça brasileiro é, talvez, o ambiente em que esse pacto vigora com mais eficiência nos espaços de poder do país, razão pela qual não se identifica eficiência nem eficácia da legislação, ainda que se trate de legislação antirracista, e, consequentemente, induza ao desencantamento das vítimas ao procurarem a resposta do Estado e de quem atua no uso das ferramentas jurídicas para promoção e defesa de direitos dos grupos vulnerabilizados.  

Por essa razão, não pode o direito ser alçado ao patamar de solucionador dos conflitos como uma ferramenta mágica. Isso porque, primeiramente, as sociedades não são unilineares nem destituídas de saberes; posteriormente, porque o sistema de justiça brasileiro é formatado pelos ditames do colonialismo, que impede a credibilidade do diverso com o intuito de exercer o controle e a dominação. Nesse âmbito, é indispensável admitir a imprescindibilidade da tomada do direito pelos grupos vulnerabilizados como uma ferramenta de luta social, capaz de instrumentalizar as suas noções de justeza e de auto-organização como formas de também fazer-pensar o direito. Uma vez que a percepção estatal de direito, chamada pelos povos tradicionais de terreiro de justiça estadocêntrica, argumenta exclusivamente com base em uma perspectiva colonial representada por uma estátua cega, inclusive às violências e iniquidades do mundo, como nos lembram Thula Pires e Adailton Moreira, ela mantém o conflito com a mobilidade da vida manifestada pelas práticas e pelos saberes dos povos e das comunidades tradicionais — práticas essas forjadas pelo legado dos povos bantus e yorubás, que, a partir das diásporas negras, difundem o paradigma de “sujeito coletivo que assume um lugar de destaque na cosmologia que dita seus destinos, enraizada nas profundezas da ancestralidade”. O sujeito coletivo do qual aqui falamos está intrinsecamente ligado às diversas formas de existência, não apenas os humanos, mas os animais e minerais, antepassados, ancestrais e a comunidade de forma integral. Por essa razão, a noção de justiça pela perspectiva jurídico-estatal é insuficiente para explicar e compreender a noção de existência dos povos e das comunidades tradicionais, pois para esses sujeitos isso consiste numa concepção de não apartamento entre humanidade e natureza; não há a dicotomia entre sagrado e profano, posto que a existência é também sagrada e se complementa com os erros e acertos vivenciados. O sujeito coletivo se constitui nas formas de organização e de vida comunitária, movidos continuamente, posto que seus fundamentos e suas formas de ser-fazer-pensar não ficam parados, mas se movimentam em “diferentes realidades”, nas quais “seus parâmetros ético-normativos ampliam a possibilidade de devida diligência e responsabilização sem reprodução de violência para qualquer caso, trazendo, assim, a ciência do encante que Luiz Rufino aponta em seus escritos. Forja, portanto, a continuidade por meio da vivência “do culto à ancestralidade, à metafísica e à ciência do encante proporcionadoras de um arsenal de ações decoloniais que vitalizaram e vitalizam as formas de invenção e continuidade nas frestas”. Em outras palavras, a continuidade nas frestas abre o caminho para a busca pela copa da castanheira. 

Gostou do artigo? Compre a revista impressa

Comprar revista

Assine: IMPRESSO + DIGITAL

São 04 edições impressas por ano, além de ter acesso exclusivo ao conteúdo digital do nosso site.

Assine a revista
Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


A Mão no Brasil: A cerâmica pessoal de Cunha

Cultura

por Revista Amarello

Homens Flores

#28 O Feminino Arte

por Bruno Cosentino Conteúdo exclusivo para assinantes

Do barro ao corpo: A experiência feminina na cerâmica

#47 Futuro Ancestral Artes Visuais

por Bruno Albert

A quem serve a invenção do pecado?

#48 Erótica História

por Pâmela Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Conversa Polivox: Nabiyah Be

#50 Família Música

por Sara Hana Conteúdo exclusivo para assinantes

A chama e o fogo que queimam a casa da criança

#33 Infância Arte

por Thiago Blumenthal

Amarello Visita: Quadra da Mangueira

#39 Yes, nós somos barrocos Amarello Visita

por Pâmela Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Apanhar o que ficou para trás: relações raciais e construção de futuros

#43 Miragem Cultura

por Pâmela Carvalho

Transformações aceleradas

#32 Travessia Crônica

por Vanessa Agricola

Erótica — Amarello 48

Revista

por Revista Amarello

A Morte

#5 Transe Cultura

por Ana Bagiani Conteúdo exclusivo para assinantes

Portfólio: Monica Rizzolli

#27 Perspectivas Arte

por Mario Gioia Conteúdo exclusivo para assinantes

  • Loja
  • Assine
  • Encontre

O Amarello é um coletivo que acredita no poder e na capacidade de transformação individual do ser humano. Um coletivo criativo, uma ferramenta que provoca reflexão através das artes, da beleza, do design, da filosofia e da arquitetura.

  • Facebook
  • Vimeo
  • Instagram
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Amarello Visita

Usamos cookies para oferecer a você a melhor experiência em nosso site.

Você pode saber mais sobre quais cookies estamos usando ou desativá-los em .

Powered by  GDPR Cookie Compliance
Visão geral da privacidade

Este site utiliza cookies para que possamos lhe proporcionar a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.

Cookies estritamente necessários

O cookie estritamente necessário deve estar sempre ativado para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.