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Culpa, essa cretina

por Valentina Castello Branco

A culpa é uma cretina. Poderia dizer que não poupa ninguém, mas seria injúria. De tão torpe, libera apenas os de mau-caráter, psicopatas e deputados. Sobra para as boas almas, como nós. Se a humanidade fosse de fato organizada, aproveitaria a onda das manifestações para se revoltar contra a culpa. Alguém precisa acabar com a ditadura do remorso.

Ardiloso que é, esse sentimento, com múltiplas áreas de atuação, chega quando menos se espera. E ninguém consegue vencê-lo. Você pode tentar a terapia, como recomenda a maioria. Mas sabemos de antemão que, depois de incontáveis sessões, o analista vai simplesmente culpar seus pais.

Uma amiga, por exemplo, trabalhava como um camelo e finalmente se libertou do capataz, que, claro, era ela mesma. Sua alforria foi festejada com entusiasmo. Mal sabia, porém, que o preço da liberdade costuma ser uma dose, maior ou menor, de culpa. Recentemente, admitiu envergonhada que não se sentia à vontade para fazer nada prazeroso durante o horário comercial. Primeiro, tratou de substituir a aula de ioga do meio-dia pela das 9h, mesmo preferindo a primeira professora. Era difícil se concentrar na postura enquanto pensava em cada pessoa que batia o cartão para almoçar no refeitório onde ela deixara 10% de sua alma.

Seus dias passaram a ser preenchidos com idas ao banco, conversas sobre imposto de renda, discussões sobre encanamento e o que mais de tedioso pudesse encontrar. Livros? Só se fossem bem chatos. Filmes? Só os iranianos. Um caso patológico, diriam os pessimistas. Infelizmente, é comum.

Se as escolhas andam de mãos dadas com as renúncias, libertar-se de uma situação, ou de alguém, costuma funcionar da mesma forma para todos. Por melhor e inevitável que seja a troca que fazemos, o que deixamos para trás continua nos afetando.

No seu restaurante preferido, por exemplo. O burburinho não deixa dúvidas. Gordos e magros sofrem pelos exageros cometidos nas refeições. Os comensais mergulham em cestinhas de pães, se lambuzam de massa e terminam entregues à mousse de chocolate. Em seguida, choramingam arrependidos, como se uma entidade esganada os tivesse possuído sem possibilidade de reação.

A culpa também tem o hábito de se aprochegar depois de mentiras inocentes. Você evita o amigo chato. Ele então o persegue: telefone, e-mail e facebook. Sem ter para onde correr, você inventa uma desculpa. Explica que está com escarlatina, ou qualquer doença erradicada, e que não poderá encontrá-lo naquela noite. A lei das probabilidades diz que ele estará no mesmo show que você. Derrubado por sua consciência, será impossível aproveitar a banda e, na hora de escovar os dentes, você evitará o espelho, arrependido. Imensa injustiça. Sua atitude foi um ato de misericórdia. Somente o chato que passa por tamanha rejeição tem a chance de entender sua situação e finalmente parar de amolar a sociedade. Concluímos, portanto, que você agiu como um herói.

Se as amizades são um campo fértil para a culpa, no amor a perspectiva é ainda mais delicada. Depois da estação da paixão, a intimidade traz consigo hábitos hediondos. O pijama se torna o uniforme, as declarações românticas desaparecem e transar de lado se torna a regra. É compreensível, portanto, que eventualmente homens e mulheres se deixem seduzir pela pessoa interessante mais próxima. Meia hora de flerte no café, porém, é suficiente para que alguém com valores rigorosos se sinta a pior pessoa a caminhar pelo planeta. Claro que a traição é uma opção cafona, mas esse arrebatamento inicial por terceiros pode salvar um casamento. Basta chegar em casa, fingir que um é o outro, jogar seu marido no tapete de vaca e materializar suas fantasias. Para arrematar, ateie fogo nos pijamas destruidores de libido e evite um segundo encontro com o galanteador.

A solução talvez seja esta, apenas ficar trocando de culpas enquanto a paz não chega. Ou uma manifestação nas ruas. Ou um abaixo-assinado, sei lá.