No ínterim entre a construção de Brasília, símbolo desenvolvimentista projetado por Oscar Niemeyer, e a instauração do regime militar, marco ensanguentado de uma luta amparada pela suposta “ameaça comunista” no Brasil, formava-se o grupo Arquitetura Nova

Escola Estadual Dinah Lucia Balestrero (Brotas, SP)

Idealizado por três colegas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP — popularmente conhecida como FAU —, nascia com o intuito de estruturar um arcabouço teórico e prático de uma linguagem arquitetônica que assumisse todos os rejuntes do seu papel social. Abandonaria-se aquele elitismo engessado que até ali se manifestava como inerente à atividade e, batendo de frente como uma possível revolução, enfim se consideraria a carência como a base para novas edificações — algo bem mais à caráter da maioria da população brasileira.

Os colegas da proposta inovadora eram: Sérgio Ferro, artista de mão cheia e principal responsável por formalizar o corpo de ideias do grupo; Rodrigo Lefèvre, intelectual e grande defensor do “mínimo útil, construtivo e didático”; e Flávio Império, que, além da arquitetura, também se dedicou aos temas sociais com uma longeva e notável carreira no teatro. Pela breve descrição, percebe-se as similaridades entre as visões urbanistas e as essências de cada um como pessoa, e imagina-se, portanto, que a aproximação do trio tenha se dado sem muito esforço. 

Embora isso seja verdade, a faísca que de fato despertou as chamas revolucionárias e fez com que os três caminhos se cruzassem com mais intensidade foi o contato acadêmico-afetivo com o professor e ícone do modernismo arquitetônico, Vilanova Artigas, cujas ideias e ligações iam todas de encontro ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Assim, chegaram aos ouvidos dos pupilos ideias como a reeducação da burguesia paulistana e a criação de projetos com desenhos mais sóbrios, deixando toda e qualquer ostentação de lado, por mais que isso porventura ferisse os princípios imodestos de opulência, típico das classes mais abastadas que faziam questão de alardear seus status sociais.

Sérgio Ferro. Foto: Reprodução/Folhapress.

Sérgio, Rodrigo e Flávio, afogueados pela labareda acesa pelo professor Artigas, decidiram dar partida a iniciativas tanto no campo das artes plásticas quanto no da academia, com elaborados artigos escritos a seis mãos, sempre a partir do viés crítico à situação político-social do Brasil. Na contramão da tapeçaria do pensamento médio brasileiro da época, que com frequência exaltava Castelo Branco e cia., queriam discutir o papel social da arquitetura, ansiavam porjogar luz sobre a rivalidade intrínseca entre o desenho e a produção de um projeto, buscavam reformular as técnicas tradicionais e enaltecer o comedimento de materiais — tudo com enfoque nas construções habitacionais. 

Sérgio Ferro. Foto: Reprodução/Folhapress.

Durante os anos 1960, com a eventual chegada e as dificuldades impostas pela ditadura, trabalharam na corda bamba para manter um escritório com o qual elaboraram sobretudo residências de classe média, projetos que davam vida ao que eles mesmos, em um artigo de 1963, chamaram de “poética da economia“. No livro “Grupo arquitetura nova: Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro“, de 2003, a autora Ana Paula Koury define “poética da economia” como um meio de “superar as resistências de ordem material, representadas pelo subdesenvolvimento, para efetivar uma proposta social e cultural autônoma”.

O conceito, então, remonta a um grupo de técnicas construtivas simples, aptas para serem aplicadas recorrentemente pela população por serem viáveis mesmo em meio à escassez de recursos. A título de exemplo, podemos citar o projeto de baixo custo que é um sistema de abóbadas de tijolo, uma solução construtiva para coberturas em blocos de alvenarias sem recobrimento — vê-se um processo produtivo com franca e verdadeira participação popular, pensado nos mínimos detalhes de contexto e que, por ser assim, chegava a economias de 30% a 40% do custo geral, mesmo aumentando o salário dos trabalhadores.

Uma das grandes contribuições do grupo é a crítica social ao canteiro de obras, mais tarde teorizada e esmiuçada por Sérgio Ferro no seu “O Canteiro e o Desenho“, de 1979, livro que se sustenta especialmente sobre as palavras de Marx, mas que também cita nomes como Hegel, Le Corbusier e até Edgar Allan Poe. Chamada humildemente de “introdução” pelo próprio autor, a obra contém passagens com conceitos-base da Arquitetura Nova que seguem sendo aplicados e respirando relevância até hoje. 

Aqui, um deles:

“A harmonia e o equilíbrio, em colusão com a ranhura tirânica do emoldar, oprimem porque separam: 

1. o trabalhador de seu trabalho e de seu produto (…);
2. o produto da produção (…);
3. o produto de outro produto (…);
4. e confundem todos os produtos (…).

A harmonia e o equilíbrio oprimem em função do princípio mesmo que os anima o princípio geral da opressão: a separação, sua fonte e sua fraqueza. O desenho, com suas características atuais, é filho da separação. Se a produção é separada, o desenho, para impor-se como norma (regra e medida) de coagulação do trabalho dividido no produto que é mercadoria, não pode perder-se no movimento da produção. Para rejuntar o trabalho dividido, faz-se direção despótica — e, portanto, separada.” 

Critica-se, entre outras práticas, o uso de revestimentos, por esses “esconderem” o trabalho do operário e, como consequência, apagarem a marca da mão de obra verdadeiramente responsável pela construção, quase que como uma anti-assinatura. A “alienação do trabalho no canteiro” se amplificaria com a hierarquia e a distância entre as equipes que concebem a edificação — de um lado, fora da obra em si, temos um conjunto de pessoas que transcrevem suas intenções por meio do projeto executivo; e, do outro, temos o conjunto do canteiro, pessoas de origem mais simples que são responsáveis por de fato colocar a mão na massa, mas que, não obstante, são submetidos à autoridade técnica do primeiro grupo.

Sérgio Ferro continua: 

“Separado, o desenho faz buscar força para convencer em si mesmo. Daí ser desenho só, em si. Na ausência de necessidade efetivamente real que resultaria de sua dispersão transformadora no movimento de produção, procura envolver-se de ‘necessidades’ abstratas – harmonia, equilíbrio, margeação… Mas tais recursos têm como corolário o aprofundamento da separação. O desenho separado da produção, ao hipostasiar sua intervenção autoritária, se exibe como desenho da separação.” 

Escola Estadual Dinah Lucia Balestrero (Brotas, SP)

Infelizmente, a pressão política ferrenha do regime militar, especialmente com o decreto do AI-5, fizeram com que a dissolução do grupo acontecesse por volta de 1970. Por estarem ligados a valores comunistas — ou, tão somente, a valores que não batiam com os valores do governo ditatorial e das classes dominantes —, foram presos e interrogados, acusados de envolvimento com grupos da reação armada de oposição ao governo. 

Rodrigo ficou mais alguns anos no Brasil para, em 1975, se mudar para territórios franceses; já Flávio intensificou a atuação no teatro, além de retomar a atividade como artista plástico e seguir lecionando; e Sérgio, o único integrante que segue vivo, logo em 1972 foi obrigado a mudar para a França, onde se dedicou à pintura e à carreira docente.

Apesar do desmantelamento precoce, o grupo Arquitetura Nova continua sendo lembrado por quem pensa a arquitetura como um instrumento social, sem jamais deixar de reverberar pelos canteiros de obras e conjuntos habitacionais de todo o país — e até fora dele. De colegas da FAU a verdadeiros divisores de água da arquitetura brasileira: décadas depois, Sérgio, Rodrigo & Flávio seguem contribuindo para a ideia de um Brasil que não tem medo de se enxergar no espelho e construir poesia a partir da realidade do que vê.