Recentemente, o indígena popularmente conhecido como “índio do buraco” foi encontrado morto em sua palhoça, na terra indígena Tanaru (RO). Por mais de 30 anos, depois que os últimos membros do seu povo foram massacrados em 1995, viveu sozinho e afastado na floresta Amazônica, em um tapiri — cabana coberta com palha, cuja estrutura é de lascas e cascas de madeira, palmeiras e troncos de pau.
Apesar de monitorado pela Funai (Fundação Nacional do Índio) desde 1996 e, de quando em quando, voltar às pautas dos portais de notícias, sua etnia e língua jamais foram descobertas. O mesmo vale para o seu nome, tendo o apelido nascido por conta do costume de deixar valas profundas na mata, método que servia tanto de armadilha para caça quanto esconderijo.
Talvez você leia, ou tenha lido nas últimas semanas, que se trata de “um símbolo da resistência dos povos indígenas isolados no país“. E é verdade. Mas o que entender por “indígenas isolados”?
Indígenas Isolados
Estima-se que a colonização tenha provocado a morte de 70% dos povos originários do Brasil. Natural, portanto, que ainda hoje os indígenas não se sintam seguros diante da sociedade não-indígena. O genocídio explica o porquê de muitos optarem pelo distanciamento total, alguns se isolando até de seus próprios povos. Para além da violência desenfreada, ainda há o possível contágio de doenças: a proximidade tem o potencial de dizimar essas populações, cujos sistemas imunológicos muitas vezes ainda não tiveram contato com diversas doenças infectocontagiosas e, por isso, são mais suscetíveis a elas. Assim, alguns se refugiam como estratégia de sobrevivência, em áreas mais remotas.
Embora esses grupos tenham o objetivo comum de refúgio, eles vivem cada qual à sua maneira. Alguns não possuem moradia fixa, sobrevivendo da caça e coleta de alimentos. Outros, com hábitos mais próximos do sedentarismo, aproveitam-se da agricultura e cultivam mandioca, além de outros vegetais. Há grupos pequenos e há grupos numerosos. E, claro, há também casos de um único indivíduo autossuficiente, como o recém-falecido indígena de Tanaru.
Um outro conceito importante para entender a extensão do que representava a resistência do “índio do buraco” é o da política de não contato.
Política de não contato
Nas décadas de 1970 e 1980, a Funai adotava uma política de “atração” dos índios isolados, agindo em prol da total ausência do Estado. Desnecessário dizer que o resultado foi desastroso para os povos indígenas, que ficaram à mercê de fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e tantos outros invasores que representavam perigo. O cômputo final foi de grandes perdas populacionais e, em alguns casos, até de extermínio de grupos inteiros em decorrência de surtos epidêmicos.
A política do não contato veio depois do fim da ditadura militar, com a Constituição de 1988, que respeitava a opção desses povos de viver o isolamento, uma vez que ele se dava de maneira voluntária. O órgão, dali adiante, assumiu as tarefas de identificar e monitorar indígenas isolados, com o intuito de protegê-los e interditar ou demarcar seus territórios. Ir ao encontro deles já não era o objetivo, isso somente aconteceria em caso de perigo iminente ou a partir da decisão dos próprios isolados.
Monitorado pela Funai apesar da constante e forte pressão política, a interdição legal do território em que o “índio do buraco” habitava é um dos maiores exemplos dessa política. Por se recusar a fazer qualquer tipo de contato, o indígena fez seu direito valer a todo custo, ainda que sem ter dimensão do que suas ações representavam. O duplo homicídio de Bruno Pereira e Dom Phillips deixou dolorosamente claro — os interesses escusos falam mais alto, gritando a língua do sangue. É por isso que toda e qualquer forma de resistência deve ser valorizada.
Ao nos despedirmos do “índio do buraco“, vemos partir o último homem de seu povo, alguém que, sem saber, lutava uma luta bem maior. Um herói por falta de opção. Um paladino de uma causa que, do seu isolamento, era pura e simplesmente uma questão de sobrevivência.