Podemos considerar que existem três tempos. Passado, presente e futuro. Estes três tempos nos ajudam a fazer leituras sobre a realidade, as relações sociais e os acontecimentos históricos. Nos deslocamos nestes tempos que estão interligados e que fazem a roda do mundo girar. Um tempo influencia diretamente o outro e nós, seres humanos, muitas vezes nos perdemos neles, visto que o véu metafórico que os divide é quase invisível.
Assim, temos um futuro que só será o que será a partir do que está sendo construído no tempo presente. Bem como agora nos alimentamos do passado, para desenhar o presente e vislumbrar o futuro.
O ideograma adinkra Sankofa nos ajuda a pensar estes tempos. Sankofa é um pássaro. Na origem da palavra, o termo Sankofa pode ser traduzido como “volte e pegue”: san – “voltar”, “retornar”; ko – “ir”; fa – “olhar”, “buscar” e “pegar”. Porém, com o intelectual negro Abdias do Nascimento, a palavra-conceito teve interpretações ainda mais profundas, podendo ser lida como “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.
O movimento proposto por Sankofa nos é muito útil para ler o mundo, especialmente os espaços geopolíticos marcados pela colonização e pela construção de diásporas negras, como é o caso do Brasil.
Quando pensamos em nosso país, muitas vezes somos remetidos aos símbolos nacionais, às paisagens, à cultura. Mas é essencial que politicamente não percamos de vista que o Brasil, enquanto nação, foi formado num contexto bastante específico.
Entre o fim do século XVIII e meados do século XIX, chegaram às terras do que hoje chamamos de Brasil cerca de um milhão de africanos escravizados. Dentro desse período, a primeira metade do século XIX registrou o fluxo mais intenso do tráfico atlântico, em que os africanos representavam cerca de 80% dos habitantes em fase adulta nas fazendas de café e açúcar nos atuais estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Este sistema estruturou relações econômicas, políticas, sociais, culturais e principalmente relações de poder. A crença na supremacia branca versus a inferioridade negra foi plantada na mentalidade nacional e nas estruturas do país.
Desta forma, o racismo foi construído em nosso país como um “crime perfeito”. Algo que baseia as nossas relações, está presente em nosso cotidiano e na construção da sociedade, mas que, ao mesmo tempo, algo em que não se pode tocar e que é veementemente negado quando falamos de indivíduos. O Brasil é um país construído sobre bases explicitamente racistas, mas onde ninguém comete racismo.
É importante salientar que o racismo faz parte de um projeto político amplo, produzido racionalmente, e não por acaso, como se pode pensar. Durante o século XX, pseudocientistas e estudiosos aparelhados pelo sistema racista desenvolveram estudos com a finalidade de comprovar a inferioridade da população negra e estimar em quanto tempo pessoas pretas e pardas desapareceriam do Brasil. Nesse sentido, as teorias de “democracia racial” também foram importantes mecanismos no movimento de mascarar o racismo, a partir da crença na harmonia entre as raças no Brasil e apresentava a miscigenação como um processo de evolução da população negra, mediante embranquecimento.
O intelectual Silvio de Almeida escreve o livro O que é racismo estrutural, em 2018, onde observa a formação do racismo e das teorias raciais no Brasil e no mundo, estando inserido na Teoria Social e estruturado nas formas de organização da sociedade. O autor aponta que:
“Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal” (ALMEIDA, 2018: 63).
Assim, o acesso à educação apresenta-se como uma importante pauta para os movimentos negros de todo o país. A possibilidade de gerar impactos positivos e desenhar outros contornos para trajetórias marcadas pelo racismo e pelas desigualdades, bem como a articulação entre saberes acadêmicos e práticos aproximam juventudes negras de uma reflexão na qual a educação seria um passo acertado. Porém, nos espaços de educação, também é possível perceber e ser vitimado pelas estruturas racistas de nossa sociedade. Não estamos imunes, nem em espaços educativos, e isso foi percebido e discutido firmemente por pesquisadores e ativistas negros.
A entrada de estudantes negros nas instituições de ensino passa a ser pauta prioritária nos movimentos negros. Um importante momento nesse contexto é a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e pela vida, na qual é desenvolvido um plano para a superação do racismo, denominado como Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial. Neste programa, a educação é apresentada como um possível ponto de partida para a caminhada rumo à superação do racismo. Nele, havia propostas como a implementação da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial no Ensino, monitoramento dos livros didáticos e programas educativos. Algumas dessas demandas foram atendidas pelo poder público, marcando a capacidade de incidência política dos movimentos negros organizados.
Podemos perceber que, graças a pressões, propostas e investimentos políticos dos movimentos negros, a partir da década de 1990, começam a ocorrer mudanças consideráveis no que diz respeito à educação, ao antirracismo e ao acesso. Um exemplo disto é a LDB – Lei de Diretrizes e Bases e as leis municipais acerca da educação. Em 2003 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou a alteração na Lei Nº 9.934, de 1996 (que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional), implementando a Lei 10.639/2003, que prevê a obrigatoriedade do ensino de História da África, dos africanos e história da cultura afro-brasileira. Ainda assim, é importante destacar que a fiscalização a fim de verificar a real implementação dessas diretrizes ainda precisa avançar muito.
Ainda pensando ações afirmativas, a Lei das Cotas (Nº 12.711) foi aprovada em agosto de 2012, como política pública de ação afirmativa na Educação Superior no Brasil. A lei previa que as universidades reservassem 50% das vagas para estudantes vindos das redes públicas de ensino. E, dentro desta porcentagem, haveria reserva de um percentual específico para estudantes negros (pretos e pardos) e indígenas. A porcentagem varia de acordo com o percentual dessas populações em cada território, de acordo com o IBGE.
Em 2022, temos o marco dos dez anos da Lei de Cotas. Em 2011 – um ano antes de minha entrada na universidade -, do total de 8 milhões de matrículas, 11% foram feitas por alunos pretos ou pardos em universidades federais. Em 2016, o percentual de negros matriculados já havia subido para 30%. Não podemos afirmar que todos estes estudantes ingressaram no ensino superior através de ações afirmativas, mas o incremento nos números é expressivo e pode ser entendido como uma possibilidade de ascensão social e econômica quando falamos de populações historicamente empobrecidas e vitimadas pelo racismo estrutural. A escritora nigeriana Chimamanda Adichie afirma:
“Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e ressaltar o mal. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. A escritora americana Alice Walker escreveu isto sobre seus parentes do sul que haviam se mudado para o norte. Ela os apresentou a um livro sobre a vida sulista que eles tinham deixado para trás. ‘Eles sentaram-se em volta, lendo o livro por si próprios, ouvindo-me ler o livro e um tipo de paraíso foi reconquistado.’ Eu gostaria de finalizar com esse pensamento: Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso.”
Para tentarmos superar o passado racista, é necessário seguirmos Sankofa e apanhar o que ficou para trás. É essencial recuperarmos as narrativas, epistemologias e dignidade dos povos negros, subjugados pelo racismo e pelas desigualdades.