Certa vez, um pai contou-me que, quando pequeno, seu filho temia ir à praia. Um dia, ajoelhou-se junto ao menino para entender como via o mar. Compreendeu rapidamente sua aflição: aos olhos de uma criança, o oceano é uma imensidão assustadora.
Essa imagem ilustra o modo como vemos – em termos de intensidade – o trauma: o frágil indivíduo que lhe é exposto sente-se sem saída, sobrecarregado, obrigado a lidar com seus próprios recursos. Por isso é comum falar-se de experiências traumáticas na infância, já que, nessa fase da vida, estamos mais desprotegidos e menos preparados para o mundo externo.
Proveniente do grego, a palavra trauma significa ferida, que, por sua vez, vem de furo. Trauma é ruptura, cicatriz. Todos se utilizam banalmente desse conceito, sem saber do que se trata e sem refletir sobre o funcionamento da mente humana.
Vivemos à procura de satisfação e de nos desfazer daquilo que nos faz mal. Podemos dizer que estamos sempre em busca de prazer e de nos livrar do que é desagradável.
Em psicanálise, trauma é definido como um afluxo excessivo de excitação em relação à tolerância do aparelho psíquico: a quantidade de emoção é tão violenta e intensa que somos incapazes de suportá-la. Isso ocorre porque a pessoa ali exposta encontra-se despreparada, e o volume de sensações e de estímulos torna-se, em termos psíquicos, maior do que aquele que pode aguentar.
Na situação traumática, somos afogados por um excesso de emoções – como se uma cachoeira, durante a chuva, transbordasse, dentro de nós, sentimentos intoleráveis. Essa vivência ficaria armazenada, como uma explosão que tinge nosso mundo interno. O registro do ocorrido, porém, não permanece integralmente, tamanha sua força. Embora o estímulo traumático seja reprimido, sobram marcas e detalhes daquela cena. Um cheiro, um som, um lugar, uma cor, tudo de repente contaminado por aquela circunstância. De tudo fica um pouco – já dizia Carlos Drummond de Andrade.
Esse resíduo permanece então registrado em nossa trama mental; e de tal forma que, quando algo se aproxima daquele marco, sensações que pareciam adormecidas despertam. O trauma é uma vivência emocional que muitas vezes parece esquecida, podendo de súbito acordar, a despeito de nosso desejo de eliminá-la. Ficamos de alguma forma reféns dessa experiência, aprisionada, congelada dentro de nós, indigesta.
“I’ll carry it in my heart” – diz o poema de E.E. Cummings. Esse tipo de situação emocional acaba não sendo expresso em palavras, pois seu conteúdo muitas vezes é tão doloroso que se torna inominável. O inconsciente então se utiliza de imagens, representações cujo colorido emocional remete àquele momento.
Por isso são frequentes os sonhos que repetem uma passagem traumática. Durante o dia, a mente se dispõe a esquecer aquilo que a feriu. À noite, porém, com a censura adormecida, as imagens regressam. Esse retorno é uma tentativa, promovida por nosso inconsciente, de elaborar a vivência dolorosa. É como se, à noite, trabalhássemos de forma a digerir o que se passou, já que se trata de algo intoxicante. No entanto, a intensidade do fato é tamanha que este, para que a mente continue funcionando ao acordar, acaba reprimido.
Recentemente, vi a instalação da artista Rosangela Dorazio, que narra uma cena forte, ocorrida entre o muro e a jabuticabeira de uma casa durante sua infância. O que o expectador escuta sobre o episódio carrega sua imaginação com uma intensidade brutal. Ao ouvir o relato, feito por uma contadora de histórias de voz doce e suave, é como se fôssemos novamente crianças. Somos tomados por um sentimento de cumplicidade e horror, como se obrigados a testemunhar o incidente. Queremos fugir, esquecer aquela história, que, no entanto, permanece, impregnando-nos como uma memória que não quer ser esquecida e que, a qualquer momento, pode voltar a assombrar, tal qual um fantasma adormecido.
Entre o muro e a jabuticabeira, algo se passou. Eu vejo e me lembro. Vejo o muro, vejo a árvore – e isso me remete a uma situação. Contudo, não vi, nem estava lá, pois não aguentei testemunhar aquela cena. Meus pequenos olhos infantis tentaram se afastar, dividir minha mente, e fingi para mim mesma que a esquecera.
Mas há algo que se passou num espaço entre o cimento e as plantas. Ali, tomado de lembranças, nada mais crescerá. Nada que brotasse naquele canto poderia ser fértil. Aquela imagem, dali em diante, ficaria em mim, impregnada, enrijecida. Pois eu vi; não queria estar lá, mas estava. Não houve escolha.