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Amizade como forma de Amor

por Carmen Maria Gameiro

Pintura de Gabriela Machado

Aquele que conhece outros é sábio.
Aquele que conhece a si mesmo é um iluminado.
– Lao-Tsé

Está no coração o desejo de amar na forma filos. Porém, se na memória a dor estiver viva, o medo impedirá a entrega ao amor. Através da experiência profissional, o terapeuta Lowen comprovou que a maior dificuldade para as pessoas se abrirem ao amor é o sentimento de culpa e seu decorrente estado de tensão. Os infelizes têm o coração fechado, inacessível ao outro.

Amar é quando o coração se abre por completo. Do fenômeno em que o coração é tocado pode acontecer o amor à primeira vista. A excitação por um olhar, um aperto de mão ou um beijo envia uma onda de calor ao corpo todo, e essa sensação cria o desejo de ficar tão perto quanto possível do ser amado. O contato físico aumenta a excitação e há uma descarga da tensão criada pelo desejo. Lowen defende a tese de que só a aceitação sem culpa ou julgamento é capaz de nos abrir ao amor filos.

Há pessoas que nutrem o tabu de não manter contato sexual com a pessoa amada. Esse tabu, segundo Lowen, advém de experiências de infância, do período edipiano, e tem como efeito a separação da personalidade: a distinção entre o amor no coração e o desejo sexual no aparelho genital – o que bloqueia a satisfação amorosa. Muitas pessoas infelizes jamais têm contato com a sensação e o desejo de amar ao mesmo tempo.

Diz o mito – relatado por Aristófanes em O banquete de Platão – que, no início, os seres eram duplos e esféricos, e os sexos, três: um, constituído por duas metades masculinas; outro, por duas metades femininas; e o terceiro, andrógino, metade masculino, metade feminino. Zeus cortou-os em dois para enfraquecê-los. Cada um tornou-se então um ser fendido, e o amor recíproco se originaria da tentativa de restauração da unidade primitiva. Muitos chamam esta busca de encontro da alma gêmea.

Os seres iniciais, no mito, não eram apenas bissexuais. Na sociedade helênica, era valorizada a amizade homossexual, sobretudo a masculina, como forma possível desse encontro. Hoje, porém, ainda há sociedades que não admitem a amizade, o carinho e o contato físico entre as pessoas do mesmo sexo. Em outras, não há qualquer possibilidade de amizade entre pessoas de sexos diferentes. Tudo é apenas uma questão antropológica e moral. O significado mais aceito sobre o mito é o do anseio do ser humano por uma totalidade do ser, um completar-se que representa o processo de aperfeiçoamento do próprio eu.

Uma pessoa com alma generosa se relaciona num contexto filos, amor ou amigo-amante, e busca qualificar a vida numa completude, contrariando a forma do amor eros, que projeta a masculinidade ou feminilidade no outro. Neste, ama-se a pessoa porque tem algo que não se tem. É ciumento, mesquinho e invejoso. A busca pelo bem e pelo belo leva o ser humano a desejar a felicidade, numa procura incessante por se apaixonar. Não se apaixona pela pessoa ou por tudo que representa, mas por uma representação interna da pura beleza, segundo Platão.

O amante filos sabe separar-se do ser amado. Vê o outro. Sua atenção está na pessoa amada. Seu relacionamento amoroso é material, ou seja, o outro existe, está aqui ao meu lado. É muito confundido, erroneamente, com um amor espiritual ou idealizado, também chamado de amor platônico. No amor eros, por sua vez, a atenção está no eu, no ego. O outro é coisificado e serve para completar e satisfazer necessidades. É egoísta.

O casamento necessita ser reestruturado. Os pares devem se perguntar: o que busco neste relacionamento? A resposta influenciará no contato amoroso com os filhos. As dúvidas e as controvérsias sobre a sexualidade devem ser amplamente discutidas entre pai, mãe e filhos, pois há um desnorteamento quanto à educação sexual, os limites e responsabilidades de cada um na educação.

Quanto aos jovens, há sinais de que não estão tão livres como pensam. Não apreenderam, não viram, não vivenciaram relacionamentos familiares maduros e amorosos. Muitos pais não exercitaram o amor filos. Desta forma, dificilmente a família poderá sobreviver, e a consequência será o vazio existencial, não raro o grande uso de drogas – legais e ilegais – que simulam a sensação de liberdade e de transgressão às normas. Contudo, a dita educação moderna sinaliza para a necessidade de uma progressiva libertação amorosa individual dentro da vida conjugal e familiar. Nem a fórmula antiga de relacionamento deu certo, muito menos a contemporânea. As mudanças e as implicações sociais são imprevisíveis.

Para uma existência feliz há de se ter coragem para as amizades verdadeiras. Filos prioriza a qualidade e não a quantidade dos amigos. É um sinal de maturidade. Olhar nos olhos e começar um relacionamento amistoso consigo antes de encarar o outro face a face.

A amizade verdadeira é uma grande mestra. Quando o coração e a mente estão abertos, a aprendizagem flui numa relação dialética, como Apolo, o deus grego, que tem por característica a harmonia resultante da tensão entre contrários. Sócrates, ao buscar respostas no oráculo em Delfos, viu escrito no portal: conhece-te a ti mesmo. Tornou essa sua meta.

É político o relacionamento filos, que nasceu na polis, precisamente no Ágora, lugar democrático onde se dialogava sobre a vida pública em Atenas. É uma noção plural. Agita e provoca mudança social. Tem a capacidade de transfundir as estruturas que sustentam o ser isolado.

A dificuldade encontrada por alguns em manter um relacionamento filos é a própria dificuldade de se relacionar com o próprio self. A amizade é um bom e poderoso motivo para criar vínculos numa estrutura social geradora de inimigos. Se as pessoas fossem mais generosas, relacionar-se-iam de forma a superar idades, gêneros, preferências sexuais e obstáculos legais e culturais.

O instinto sexual comprova o empenho da vontade ou do amor erótico para perpetuar a espécie. O amor, nesse sentido, é ilusão, visto que nele, ao conquistar o outro, cada indivíduo pensa em levar vantagens. Na verdade, apenas realiza um trabalho gratuito em favor da reprodutividade ou do desejo. Presume seguir interesses pessoais, mas segue os da espécie, na maioria das vezes sem se saber a serviço.

Com quem fazer projetos de vida se não com amigos? Quando pequenas ou grandes perdas rompem o dia a dia, nada melhor que um amigo a quem pedir o ombro ou o colo.

Felizmente, a amizade encontra vias de expressão na literatura universal, nos livros sagrados, nas belas artes, no atletismo, na culinária e no design. Está intrinsicamente ligada ao bem, ao bom e ao belo.

A amizade mais profunda é entre Gaia (a terra) e a humanidade. Através desta ecologia, entra-se em contato com o todo. É o centro da relação com o mundo descoisificado, que provoca a consciência da existência e da vida no universo.

Filos nos faz ver a luz da verdade. É um caminho para se sair da ignorância. Não abarca para si toda a verdade, mas a possibilidade de amar o conhecimento. Daí nasce o filosofar.