Pagaram a conta obcecados pelo dono do restaurante. Ligaram-me logo em seguida, alta madrugada, para contar do grande encontro. A descrição de Ayris me tirou o sono.
Ex-obeso mórbido, obsessivo-compulsivo confesso e medicado, bem remediado, estômago costurado. Perdeu gordura e dinheiro no passado, chegou ao presente magro, chef de cozinha, artista e, aguarde, em breve: halterofilista.
Você precisa conhecer o Ayris, repetiam os amigos. Me convenceram, venceram.
A ideia de encontrá-lo me tirou o sono da véspera. A entrevista ainda estava no futuro, mas a imagem que fiz dele já era presente a todo instante. Vê-lo ao vivo passou a ser minha íntima obsessão.
Cheguei ao Chez Ayris, sua cozinha, e também casa própria, numa vila de Pinheiros, em São Paulo. Vejo cuecas brancas no varal a dois metros do chão, a poucos passos do balcão, e paredes escurecidas pela tinta cor de chumbo, onde estão pendurados quadros de mulheres peladas em respingos de guache e riscos de carvão. Flores fálicas nos arranjos, assistentes de cozinha másculos e (talvez) um jazz fechavam o ambiente luxuriante.
Não tinha fome. Era apenas sede e medo. Ou preconceito, vai saber, pois sou cheio deles – é minha fraqueza e minha defesa. Me assombrava a ideia de encarar alguém que assume o lado mais obscuro da sombra. Ao mesmo tempo, sua história me atraía. Era como se ele fosse o proibido da vida. Sexo, comida, dinheiro e pênis aos montes: tudo é parte de seu universo compulsivo, temas recorrentes de sua rotina, da biografia e da arte que esboça agora.
Ayris, seu nome próprio, é Syria ao contrário. E eu andava avesso à sua história, que, mais tarde, durante o almoço, seria passada a limpo. Nosso personagem nasceu no Mato Grosso, quase na Bolívia. Aos oito anos, foi mandado para São Paulo, onde estudou em colégio interno até a adolescência. “Meus pais supriam a minha saudade mandando dinheiro.” Ficou órfão aos vinte, gastou a herança até os quarenta, morou no Copacabana Palace por um ano, bancou amigos, perdeu tudo, engordou demais e caiu.
Foi estranhamento à primeira vista. Seus olhos filmavam o desenho do meu corpo, meus gestos, meus passos. “Anos de análise me fazem observar todos que vêm aqui. É natural”. Não houve gelo a ser quebrado, pois então. Em um minuto de “convivência”, éramos puro embate e, uma vez analisado de cima abaixo, não me senti nem um pouco envergonhado de violar sua intimidade. Era preciso entender os motivos que o levaram a fazer do corpo o suporte de seu trabalho inaugural, carnal na veia. Do que se trata: construção de deformações como crítica (ou ode) ao culto da boa forma. Segundo ele, “uma resolução muscular em 3D”.
– Projeto de vida?
– Não, de arte. Mas estou usando minha vida para isso.
Da cirurgia bariátrica às plásticas para restaurar a pele que habita, do implante de mandíbula à prótese de glúteo, tudo foi documentado em foto por Valentino Fialdini e será apresentado ao grande público no ano que vem. “Tinha o desejo de me transformar para me reconhecer de outra maneira.” São lâminas que revelam o passo a passo de um processo iniciado em 2004, quando os pesos e medidas de Ayris Kury, de 48 anos, ultrapassavam os limites do entendimento espacial. “Era preciso mudar, ou então morreria. A comida alimentava minhas ideias suicidas. Então houve um motivo de saúde por trás dessa transformação, que resolvi transformar em arte.” Há retratos de nus com drenos saindo pela virilha, cicatrizes, traçados de cirurgião que desenham o corpo como cortes de gado. É Frida Kahlo com Mapplethorpe, repulsivo e perturbador. Transgressor. Doloroso processo que se encaminha para a reta final. A última “chapa” será batida em poucos meses, quando o personagem que deu origem a série chegar ao corpo desejado, escultural, com combinação de fisiculturismo e dieta de UFC. “Vou criar uma armadura em alta definição, onde todos os músculos ficarão visíveis. Isso exige uma atitude obsessiva: tem de comer, dormir, seguir regras muito duras.” Vale tudo para a construção de um site specific ambulante e em mutação constante. É homem performance de verdade, intervenção de vaidade. “Sempre tive uma sensação muito forte de desconforto com minha aparência, um sentimento de inadequação. Hoje uso meu corpo para exercer poder sobre o outro, mas penso se ele pertence a mim ou a quem olha”.
Para quem vê de fora, Ayris fez apenas um making of de seu extreme makeover. Por dentro, sua ideia é transpor as compulsões para o lado claro da força, a construção no lugar da destruição; em vez de gastar, comer tudo e todo mundo, o resguardo e a saúde para preencher o vácuo de uma existência transtornada. É estética pura tudo o que fez, mas não está em discussão entender os meios que o levaram à reforma física. A questão é saber o que ele fará com o vazio quando der a obra por terminada.