Coloco meu pijama, saindo direto do banho, e sinto a maciez do algodão na pele. Puxo meu edredon, experimentando o reconfortante aroma de lençóis recém-lavados. Suspiro, feliz, e mergulho no algodão egípcio de mil fios. Apago as luzes e fecho os olhos, pronta para abraçar uma renovadora noite de sono.
Mas algo me mantém acordada. Reviro-me, desconfortável. Finalmente, ao desistir, acendo as luzes. Aha! Ali está. Um canto da porta de meu armário está aberto, e consigo ver as vagas formas de camisas e jaquetas penduradas em seu obscuro interior. Levanto-me, devagar, e cuidadosamente fecho a porta, olhando ao meu redor para ver se existe alguma outra anomalia.
Nenhuma. Estou segura. Arrasto-me de volta à cama e mergulho sublimemente no sono.
Comecei a notar certos padrões repetitivos na minha vida há seis ou sete anos. Saía então de outro tipo de crise emocional, uma que me deixara confusa e desamparada. Com vinte e poucos anos, batalhava com sentimentos alternados de profunda depressão e exaltação. Finalmente, aos 24, fui diagnosticada com distúrbio bipolar do tipo II.
Receber o diagnóstico foi uma mistura de alívio e desespero. Alívio por encontrar um nome, um rótulo para aquilo que vivia. Desespero porque o resultado de minha pesquisa inicial sobre transtorno bipolar fora desolador. Altas taxas de suicídio, divórcio, vícios químicos, dificuldade em manter empregos e relacionamentos… De repente, senti o chão se abrir diante de meus pés e me vi desequilibrada, à beira do abismo, aterrorizada pelo medo de cair.
A relação com os membros de minha família era tensa, apesar de não terem culpa. Sentia-me como se não tivesse amigos; mal-amada e, mais importante, desmerecedora de amor. Por isso, afastei justamente o amor – de que eu tão desesperadamente precisava. No meio desse caos emocional, encontrei um médico maravilhoso que, com o auxílio de medicação prescrita e terapia cognitiva, começou a me ajudar no longo caminho de saída das trevas.
Minha vida estava em ruínas. Para todos os lados que olhasse, só via e encontrava o caos. Seria, portanto, estranho que tentasse, progressivamente, ordenar aqueles objetos sobre os quais tinha controle?
Comecei pela minha mesa de trabalho, onde não suportava ter coisa alguma. Somente o computador, o teclado, o mouse, a impressora e o telefone estavam autorizados ao privilégio de passar a noite ali. Nada de papéis, post-its, grampeadores, recibos, recados, canetas ou qualquer outro elemento que pudesse perturbar minha paz. Objeto nenhum poderia permanecer sobre aquela sagrada superfície.
Aos poucos, tal padrão se estendeu à vida pessoal. Minha prateleira de livros tinha de ser organizada simplesmente assim – não por ordem alfabética, por autor, por assunto, nem mesmo por tamanho. Nenhum critério que fizesse sentido fora de minha cabeça. A ordem tinha um significado particular – uma espécie de classificação cronológica de minha vida. Então, a Enciclopédia Ilustrada Britânica se encontrava ao lado do Clive Cussler e do Fernando Sabino, espremida entre um guia turístico do Quênia, e por aí vai.
Minhas bugigangas de viagem tinham de estar viradas a uma certa direção, e frequentemente me gabava, para mim mesma, de que estava ficando igual a Kathy Bates em Misery, de Stephen King – eu podia imediatamente saber se alguém estivera em meu apartamento pela posição milimetricamente alinhada de meus pertences. A primeira coisa que fazia ao chegar em casa era checar se tudo estava em seu devido lugar. Só então conseguia relaxar.
Com o tempo, esse comportamento impulsionado pela ansiedade foi perdendo força. Paulatinamente, o equilíbrio começou a se restabelecer em outras áreas de minha vida, e consegui me desapegar daquela rigidez com a qual controlava meu ambiente.
Para ilustrar, é importante entender as definições aqui cabidas: transtorno obsessivo-compulsivo é um distúrbio de ansiedade – a pessoa tem pensamentos indesejados, que levam à repetição de certas ações, geralmente de uma maneira altamente ritualizada. Trocando em miúdos, o TOC consiste em dois elementos fundamentais: obsessão e compulsão. Resumidamente, obsessões são pensamentos ou imagens que não vão embora; que permanecem. Uma obsessão é invasiva e normalmente entendida pela pessoa que a possui como irracional, algo que não se consegue interromper, parar ou ignorar. Obsessões podem ter diferentes níveis, desde os mais leves, com ocorrências apenas ocasionais, até aqueles de fato severos, ininterruptos, que podem e costumam impactar negativamente uma vida. Esses pensamentos reincidentes resultam, cedo ou tarde, em relacionamentos pessoais tensos e causam dificuldades no ambiente profissional.
Obsessões podem levar à compulsão – denominação geral dada à maneira como a mente se mobiliza para lidar com os pensamentos indesejados que a inundam. Da mesma forma que, no meu caso, sentindo-me mentalmente confinada a um ambiente instável e caótico, descobri conforto e alívio na ordenação minuciosa de meus pertences, muitas pessoas, por sua vez, encontram meios de amortecer o medo de doenças, por exemplo, lavando as mãos ritualmente.
Obsessões são pensamento recorrentes; compulsões, ações recorrentes. Usa-se a compulsão para espantar – fintar, domar, de certo modo adiar – a obsessão. O perigo, porém, é que as obsessões, quando não tratadas verdadeiramente, voltam, e forçam o sujeito a uma compulsão ainda mais extrema – o que constitui um ciclo negativo e permanente de obsessão-compulsão.
Confunde-se, geralmente, compulsão com alguma modalidade de vício. A diferença, contudo, é reluzente. Pessoas que sofrem de algum vício se sujeitam a situações extremas, não raro prejudiciais, motivadas pela promessa de prazer – gozo que costuma ser ilusório, e cada vez mais difícil de alcançar, o que leva os viciados a uma nova dosagem, progressivamente maior, seja de droga ou, em busca de carga adicional de adrenalina no sangue, de alguma atividade física.
Aqueles que lutam contra a compulsão não sentem prazer nas ações repetidas. Uma vez terminado o ritual, seja o de abrir e fechar portas ou o de lavar as mãos seguidamente, a pessoa é apenas tomada por um sentimento de alívio, de relaxamento da pressão decorrente do pensamento obsessivo. Nada a ver com o prazer, porém.
Isso pode ser um pouco confuso. De modo geral, viciados chegam a um ponto em que não conseguem mais usufruir do comportamento – do estado – viciado, momento a partir do qual apenas procurarão saciar a necessidade de consumo ou de envolvimento. Habitualmente, isso é potencializado pela abstinência, tanto mais se prolongada. Assim, apesar de parecer um comportamento obsessivo-compulsivo, devido ao fato de o elemento gerador de satisfação não estar mais presente, a motivação original do tal comportamento consistia em “sentir” prazer.
Outra diferença fundamental entre vício e compulsão está na consciência sobre a realidade. Aqueles com TOC geralmente têm noção de que sua obsessão não se baseia na realidade. Frustram-se e perturbam-se ante a própria necessidade de praticar comportamentos ilógicos, mas, de modo a aplacar a ansiedade, sentem-se obrigados a tal.
Por outro lado, os viciados costumam ser bastante desligados de qualquer consciência sobre a falta de sentido de suas ações. Justificam-nas com autoenganos e com razões autoilusórias – o sentimento de que estão somente “se divertindo”, por exemplo, ou a impressão de que outras preocupações não são tão relevantes. Essa negação da realidade tende a não ser confrontada até que alguma grande ocorrência, com consequências graves, force a emergência da percepção sobre o real – um acidente devido à ingestão de álcool, ou a perda de uma disputa de custódia.
O diagnóstico do TOC é complicado e delicado, pois o transtorno geralmente vem acompanhado de algum outro distúrbio psicológico, daí que possa se apresentar em uma grande variedade de comportamentos. As obsessões mais comuns incluem o medo de doenças e/ou de germes, a significância descabida dada a certos números, as excessivas precauções de segurança e uma preocupação torturante sobre se algo foi feito “da maneira certa”.
As mais frequentes compulsões que se contrapõem a essas obsessões são: lavar as mãos seguidamente, usar antissépticos, repetir certos movimentos um número específico de vezes, fechar e abrir portas, checar e rechecar o desligamento de aparelhos elétricos, acumular coisas e fugir de certos itens e/ou lugares (como faz o personagem de Jack Nicholson em Melhor impossível, que evita pisar nas rachaduras das calçadas).
Para mim, o leve TOC era um jeito de lidar com a obsessão de que a minha vida se despedaçava sem que eu tivesse qualquer controle. Isso estava claro como a luz do dia. Sabia por que fazia aquilo – algo que, de resto, nunca chegou a interferir no meu cotidiano. Para muitos, entretanto, o TOC é uma dificuldade e um caminho alienante.
A vida hoje muitas vezes é caótica e exigente. Existe a pressão para que sejamos bem-sucedidos em nossos trabalhos, em nossos relacionamentos e em nossas amizades. Nunca antes se viveu numa sociedade que demandasse tanta estabilidade e felicidade individual. Os estados de depressão, tristeza ou raiva são repudiados e tratados como doenças, e nossos mecanismos de luto são progressivamente eliminados, pois – somos sempre lembrados – o show tem de continuar.
Será muito espantoso, então, constatar a quantidade de pessoas que ora se encontram em plena luta contra os distúrbios de ansiedade, como o TOC? No mundo ocidental, somos obcecados pela felicidade, como se fosse um objetivo inalcançável, quase um destino, quando, na verdade, é um simples estado, aliás atingido justamente quando conseguimos nos desapegar de nossas melhores e maiores expectativas. Ser obcecado se tornou o padrão de várias maneiras, e a terminologia caiu no uso popular. Aplicamos – jogamos – a palavra como se não tivesse peso e, assim, potencializamos verdadeiras obsessões, alimentadas pela persistente ansiedade de estarmos sempre “à altura”, sempre encaixados às normas.
Só conseguiremos realmente entender o dano perverso que o verdadeiro comportamento obsessivo-compulsivo pode causar sobre as sociedades quando finalmente aprendermos a não ser obcecados pela nossa própria felicidade, expectativa social e definições de sucesso.
Ate lá, porém, deixe-me fazer mais uma “ronda” pelo quarto e verificar se todas as minhas portas estão fechadas.
TOC
por Leticia Lima