(…) mas não apresse a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na Ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela Viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te .
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E agora, sabes o que significam Ítacas.
Constantino Kabvafis, O quarteto de Alexandria
Sempre adorei as festas de réveillon. Todos de branco, se abraçando, desejando que o próximo ano seja repleto de coisas boas. Ano novo, vida nova, possibilidade de recomeço. Bem vestidos, de roupa nova branca, contemplamos o que está por vir, celebrando. Recebemos o novo ano como quem conhece um novo amor, acendemos velas, brindamos a ele, oferecemos flores, cheios de esperança em que dessa vez seja melhor.
Existe algo de encantado no futuro. Algo mais iluminado do que o agora. Sempre há alguma idealização sobre o momento que não estamos vivendo. O futuro obscuro vem com um dever: lá, naquele lugar, serei feliz. Quando me casar, quando concluir um projeto, quando tiver filho, quando comprar um apartamento. E se não acontecer? E se for diferente?
Tanto o passado quanto o futuro ficam reservados numa espécie de altar em nossa mente. O passado, por ter sido meu, acaba tendo um valor nostálgico. Meu pai dizia: não brinque com o passado; ele é muito perigoso, às vezes muito sedutor. É muito fácil virar refém do lugar onde não fui feliz, numa condição de vítima privilegiada, paralisada, revendo o que ficou para trás. Deixando de dar lugar para o agora, remoendo uma condição que não mais existe.
Penso que o mais desafiador é poder se movimentar no presente, não apenas em direção ao futuro, mas colocando o passado em seu devido lugar. Resignificando-o. Dando outro sentido para a vida que tive até então, acabo colorindo-a com um tom mais vivo. Assim, me locomovo com mais tranquilidade em minha história. Transito pelas minhas memórias, visito-as, como um espectador que revê um filme e se aproxima de uma cena com outro olhar. Este seria o verdadeiro preparo para o que vem à frente. Para olhar ao que virá adiante, é preciso leveza acima de tudo. Existem bagagens que levamos e que são desnecessárias.
Nosso arsenal para a luta da vida são nossas vivências, aquilo que armazenamos, nossa história. E obviamente isso também agrupa os momentos duros, tristes, bem como aqueles em que fui humana, imperfeita. Fui trazida até aqui também pelos meus momentos ridículos, bobos, inseguros, aflitos. E pela forma como os enfrentei. Aí, nesse cantinho, mora a coragem e a esperança. Esse cantinho verde, cor do trevo de quatro folhas, o lugar onde nos perdoamos e rimos de nós mesmos, com ternura. Aceitamos resignados o nosso papel errante. E assim podemos seguir.
Henri Bergson, em O Riso, coloca que nada desarma mais do que o riso. Rimos daquilo que é humano, imperfeito.
Rir de nós mesmo tem a ver com a possibilidade de nos movimentarmos em nossa imperfeição, de nos flexibilizarmos frente à imagem que gostaríamos de passar e aquilo que somos. Portanto, aí mora a possibilidade de reinvenção.
Não há nada mais insuportável do que aqueles que não riem de si mesmos. Nada mais persecutório do que a seriedade, aquele script a ser seguido, rígido, em linha reta. Nada é tão estático quanto o eletro que mostra que a vida se encerrou. O que simboliza a vida é o movimento, seus altos e baixos.
Não existe um passado feito só de coisas boas, assim como não é possível um futuro ideal. Existe o futuro possível. E este não precisa ser perfeito para ser bom. Nem a gente.
Sendo assim, o que resta é: darmos boas vindas às aventuras que os novos ciclos nos reservam. Feliz ano novo.