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Sci-fi 110

por Jair Peres

“A curiosidade é mais importante que o conhecimento”
– Albert Einstein

Quem nunca sonhou com carros voadores? Clonar a si mesmo, viajar a Marte, lutar com alienígenas, voltar no tempo, ficar invisível ou até criar vida através de raios e eletrodos? O que aconteceria se o transporte molecular e o poder da mente fizessem parte das nossas vidas?

Você não está só. A ficção-científica existe para atender exatamente a isto. Desejos aparentemente absurdos, mas baseados em conceitos científicos – comprovados ou não – ou invenções, tornam-se “reais”. Os outros gêneros da ficção podem focar em momentos da existência humana e exaltá-los. Mas somente a ficção-científica muda a percepção da realidade, podendo recriá-la completamente.

Surgida como forma de literatura no século XIX; não por acaso, nos primeiros anos da revolução industrial. Relatos minuciosos baseados na ciência disponível à época e muita extrapolação mental formam a base da narrativa. Livros clássicos como Frankenstein e O Médico e o Monstro, por exemplo.

Considerado um dos pais da ficção-científica moderna, Julio Verne nasceu em 1828, filho de família francesa abastada. Testemunha ocular de alterações radicais no seu tempo, conseguiu manter a sanidade e nos deixar obras incríveis, divertidas e instigantes (Vinte mil léguas submarinas e Volta ao mundo em oitenta dias, entre outras). Além de escritor, foi marinheiro e explorador. Tentado a extinguir sua curiosidade, viveu aventuras que inspiraram suas obras. Ávido leitor, sua imaginação não tinha limites. Conseguiu prever e transcrever em seus livros muitas das conquistas que a ciência moderna realizaria ao longo do tempo. Seu trabalho tinha como base a física e as descobertas do final do século XIX, em contraponto ao seu contemporâneo H. G. Wells que, segundo Verne, “apenas inventava”.

Em uma época em que descobertas, ciência e tecnologia ameaçavam eliminar a capacidade humana de surpreender-se, Verne e Wells lançaram, em suas obras, as bases da ficção-científica moderna, traduzindo os anseios mais pueris em aventuras e possibilidades incríveis.

Em sua gênese, o cinema bebeu e muito nesta fonte. Com sua invenção patenteada, o cinematógrafo, os irmãos Auguste e Louis Lumière fizeram história. A projeção de seu curta documental A saída da fábrica Lumière em Lyon, em 1895, mudou o mundo e oficialmente inventou o cinema. Na sala de exibição estava Georges Méliès, mágico e ilusionista. Algum tempo depois, tornou-se o primeiro grande produtor de ficção, gênero inexistente até então. Diferente de tudo o que se experimentava em cinema, Méliès criou e dirigiu 555 filmes, incluindo o inovador Viagem à lua (1902). Idolatrado mundo afora, criou mundos fantásticos e técnicas de fotografia e filmagem utilizadas à exaustão no cinema desde então. Charles Chaplin o chamava de “o alquimista da luz”.

A aceitação da ficção nas telas foi enorme e o mundo queria mais. Desde sua origem, o cinema é arte e também comércio. A indústria cinematográfica cedo se transformou em negócio lucrativo e a ficção, sua maior fonte de renda. Hollywood, ainda em gestação, começava a produzir filmes desenfreadamente e seus gêneros, que eram basicamente dois (documental e ficcional), desdobravam-se em novas modalidades de forma exponencial.

Gradativamente ao longo do século XX, o interesse do público apontou para o crescimento gigantesco do mercado de cinema de ficção-científica. Hoje, pelo menos cinco entre as dez maiores bilheterias de todos os tempos são de produções de ficção-científica.

De Viagem à Lua a Prometheus (Ridley Scott, 2012), a evolução técnica de efeitos especiais, tramas e abordagens, e a própria estrutura narrativa dos filmes mantiveram-se conectadas aos anseios de um futuro hipotético, confirmando a fascinação das pessoas sobre o que está por vir. Atentos às descobertas e invenções que grandes centros de estudo e pesquisa têm feito ao longo do século, produtores e cineastas criam roteiros que as têm como ponto de partida para histórias que, em geral, refletem o momento em que estão inseridas. Algumas previsões deram certo, outras talvez nunca aconteçam, mas os roteiros que tomam os conhecimentos ou as teorias mais aceitas pela comunidade científica e os levam a um novo contexto para mostrar suas implicações, ou que constroem um mundo em torno de um conjunto particular de fatos, conseguem comunicar-se com seu público, pois desencadeiam a imaginação especulativa.

Uma das maneiras de fazer com que a projeção de teorias científicas e as emoções humanas convirjam é refletir o espirito do tempo nos filmes – algo comum em outros gêneros do cinema. Inserções de realidade e questionamentos sociais em diferentes doses marcaram a ficção-científica através das décadas.

Em 1927, em meio à turbulência socioeconômica na Europa do pós Primeira Guerra, o diretor alemão Fritz Lang lança Metrópolis, sua obra-prima muda de 153 minutos (!). Questionava o sentimento humano perdido em meio à crescente mecanização na sociedade. Utilizando a tecnologia e a arquitetura de um distante século XXI, e adicionando a mobilização social que o próprio diretor via pipocar ao seu redor, Metrópolis torna-se um marco na história da ficção-científica.

Movimentos surgem em várias partes do mundo e o cinema encontra uma assimilação como linguagem. O público aumenta. A importância deste crescimento de exibição fez com que a ficção-científica extrapolasse a literatura e o cinema e migrasse ao rádio, às revistas e às histórias em quadrinhos. Nesta época, em 1938, o jovem Orson Welles produziu uma transmissão radiofônica da obra A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells. A transmissão espalhou uma onda de pânico nos ouvintes, que imaginaram a invasão do planeta por seres extraterrestres. O sucesso abriu as portas de Hollywood a Welles e, em 1941, ele dirigiria Cidadão Kane – para muitos, o melhor filme de todos os tempos.

De Metrópolis ao fim dos anos 1950, a ficção-científica deu alguns tropeços e explorou temas recorrentes, como a Grande Depressão, a Segunda Guerra, a histeria da Guerra Fria e a crescente exploração espacial. Vários filmes eram metáforas tão claras de seu tempo que ficaram datados. Bons exemplos deste período são Invasores de Marte e O dia em que a Terra parou (cujo remake, de 2008, mudou o foco do filme, indo da corrida armamentista para o lado dos danos ao meio-ambiente).

Difundindo ainda mais a ficção-científica, em 1962 estreia na TV uma série de animação que solidificou a visão do futuro com carros voadores, robôs servis, cidades suspensas e eletrodomésticos que faziam de tudo e eram computadorizados: Os Jetsons, série adorada por toda uma geração que queria ir ao espaço e sonhava com a utópica sociedade que suprisse todos seus desejos. O questionamento do status quo estava nas ruas. De tão fantasiosa e divertida, a série atravessou décadas de reapresentações e inspirou sátiras, como Futurama, de 1999.

No meio da década de 1960, os temas da idade de ouro da ficção-científica cederam lugar à busca de uma consciência elevada e da revitalização dos valores morais. Entre 1965 e 1966, François Truffaut e Jean-Luc Goddard flertam com o gênero, focando no resgate da humanidade. Em Fahrenheit 451, Truffaut evoca a caça aos comunistas nos Estados Unidos em seu filme pirofágico. Já em Alphaville, Goddard aborda a crescente mecanização da sociedade, com uma roupagem de filme noir sci-fi. No mesmo ano, estreia nos EUA a serie de TV Star Trek. As aventuras espaciais da nave Enterprise, com o capitão Kirk e Spock (e seus comunicadores que inspiraram o desenvolvimento dos atuais telefones celulares), fizeram história. Mas os horários desencontrados e a falta de foco da NBC fizeram com que a série fosse cancelada após três temporadas. O sucesso mundial veio com as reprises incessantes mundo afora. O programa era sério na sua discussão sobre questões sociais contemporâneas em um cenário futurista. Dezenas de séries tentaram emular as características de Star Trek, mas sem o mesmo sucesso.

Em 1968, Stanley Kubrick dirige um dos filmes mais emblemáticos do gênero, 2001: Uma odisseia no espaço. Escrito em parceria Arthur C. Clarke, e com um realismo científico notável, o filme aborda a evolução filosófica do homem através da saga da nave Discovery One até Júpiter. Ao contrario dos macacos do início do filme, no espaço o homem não controla suas ferramentas. O embate entre o computador HAL e o astronauta Bowman é antológico. No mesmo ano, O planeta dos macacos fazia uma crítica aberta à corrida nuclear da Guerra Fria e foi o primeiro filme de sci-fi que teve continuações, abrindo caminho para as subsequentes cine séries.

Exatamente no ano de 1970 é lançado THX 1138, de George Lucas. Uma ode pessimista ao futuro dominado pela tecnologia. Os anos seguintes viram um planeta em profunda transformação econômica, com crises políticas e sociais. Ditaduras surgiam e caiam, não sem antes presenciarmos banhos de sangue. Andrei Tarkovski lança dois socos no estômago, Solaris, de 1972 (que teve um remake trinta anos depois, por Steven Soderbergh), e Stalker, de 1979 (sobre a busca de um paraíso interior). Uma profusão de ótimos filmes discute o resgate de valores éticos (Star Wars), a falta de petróleo (Mad Max), contatos com ETs (Contatos imediatos de terceiro grau) e corporações monopolistas (Rollerball). O medo do “outro” e o valor da vida formam a base da discussão ética do cru e definitivo Alien, de Ridley Scott.

Em 1982, estreia Blade Runner. Baseada na obra de Phillip K. Dick e também dirigido por Ridley Scott, é um filme noir com estética cyberpunk, o que o distancia dos clichês do gênero. Chuva ácida e ciborgues replicantes questionando a mortalidade inauguravam a década de 1980, marcada pelo fim da idade industrial e o início da era da informação. Tudo entrava neste liquidificador cultural. Era o início da fabricação de computadores pessoais, popularização de walkman e videocassetes, e rotina de vôos de ônibus espaciais. Socialmente, o mundo também sofria várias chacoalhadas e o cinema de ficção-científica se utilizava de todos estes ingredientes. O futuro era a tônica da época. A cine série De volta para o futuro, dirigida por Robert Zemeckis em 1985, foi um marco da década. Esta história de viagens no tempo, rock ‘n’ roll, romance e muito humor conquistou gerações de fãs. E.T., Duna, Robocop, Exterminador e O vingador do futuro, ambos com o Governator Arnold, também marcaram o período. Akira, de Katsushiro Otomo, sacudiu as bases da animação de sci-fi, com sua revolta juvenil, motoqueiros mutantes e polícia corrupta após a Terceira Guerra Mundial.

No início dos anos 1990, o mundo estava otimista com o futuro, o crescimento econômico do primeiro mundo era robusto e constante, a União Soviética ruíra e a democracia “vencera”. Paralelamente, terrorismo, fome, guerras étnicas, intolerância e crises em países em desenvolvimento aumentavam. Embalado na paranoia da desconfiança nos governos, estreia na TV, em 1993, Arquivo X, que por nove temporadas insuflou o público com uma trama muito bem conduzida e recheada de frases como “The truth is out there” (“A verdade está lá fora”) e “Trust no one” (“Não confie em ninguém”). Em meio às descobertas sobre manipulação genética que culminaram na clonagem da ovelha Dolly em 1996, o filme Jurassic Park (Steven Spielberg, 1993) dá o tom da década com o receio dos perigos do descontrole da clonagem. Johnny Mnemonic, 12 Macacos, Independence Day, MiB, Gattaca, O Quinto Elemento são outros exemplos de produções desta época. Em 1999, é lançado Matrix, que, com acrobacias espetaculares e efeitos especiais inéditos, discute a liberdade de escolha humana em meio à simbiose digital que se avistava com o crescimento da internet e a popularização da tecnologia.

A década de 2000 foi marcada pela revisitação a temas, autores e discussões antigas. Uma reciclagem criativa que, salvo por algumas produções realmente inovadoras, foi um tanto enfadonha. Sinal dos tempos, momento em que a história do mundo foi reescrita com o recrudescimento de ações terroristas, questões de causa e efeito, crises econômicas profundas e a aceleração da dependência tecnológica. Em 2001, Stanley Kubrick volta à baila no filme A.I. Inteligência Artificial, de Steven Spielberg. O roteiro inacabado de Kubrick, sobre máquinas com sentimentos, dá uma nova roupagem à clássica história de Carlo Collodi – Pinóquio. Em 2002, Spielberg visita a obra de Phillip K. Dick ao dirigir Minority Report que, por sua vez, inova na interpretação do embate entre determinismo e livre-arbítrio (apesar da presença de Tom Cruise). O cinema mundial tem bons exemplos de crossovers de ficção-científica com outros gêneros, como O Hospedeiro, de Bong Joon-Ho, de 2006, que mistura comédia, horror e denúncia ambiental na medida. Alguns exemplos de produções que espelharam as preocupações da década: Eu sou a lenda (epidemia em massa), Contra o tempo (a vontade de mudar a história), Transformers (temor de uma “invasão alienígena”), 2012 (apocalipse natural), O dia depois do amanhã (aquecimento global), Avatar (os efeitos maléficos do neocolonialismo irracional), Inception (invasão de sonhos). Em Prometheus, de 2012, Ridley Scott revisita seu filme Alien para fazer este episódio anterior. A inspiração para esta obra vem do livro Eram os deuses astronautas, de Erich Von Däniken, cuja teoria consiste em que os precursores da vida na Terra seriam astronautas extraterrestres.

Para vários fãs de ficção-científica hard, alguns filmes que o grande público identifica como ficção-científica não passam de fantasia. Estes possuem várias características de ficção-científica (aspecto futurista e locações no espaço, por exemplo), mas que apenas servem de panos de fundo para narrativas de romance, ação e aventura, como, por exemplo, a cine série Star Wars. (Ok, agora mexi em um vespeiro…). Fantasia é um gênero que usa formas sobrenaturais como estrutura narrativa e, por isto, o universo em questão é gigantesco. Da Odisseia (Homero) à Divina Comédia (Dante Alighieri), passando por Harry Potter (J.K.Rowling), Senhor dos Anéis (J.R.Tolkien) e Crônicas de Nárnia (C.S.Lewis), foi um caminho enorme o trilhado pela literatura de fantasia. As adaptações cinematográficas eram inevitáveis à medida que as técnicas de filmagem e efeitos especiais evoluíam, e as sagas, mobilizando um público ávido, multiplicavam-se.

Além da literatura de sci-fi, os cineastas e produtores tem prestado atenção a outras mídias que podem ser fontes potenciais de roteiros: graphic novels, quadrinhos clássicos, pulps antigos, curta-metragens experimentais, notícias, ideias amalucadas etc. Enfim, tudo o que está ao nosso redor pode dar um bom argumento para um filme. O inverso também ocorre. Muitas vezes a ficção-científica motivou investigações e consequentes descobertas da ciência.

Outra característica é o numero crescente de fãs ao redor do mundo que trocam informações, criam festivais, divulgam e expandem os limites da ficção-científica. Também publicam seus próprios trabalhos e, assim, garantem continuidade e interesse pela gama de assuntos possíveis. Hoje, estuda-se ficção-científica em universidades e institutos ao redor do mundo, e até em escolas filmes do gênero são exibidos em aulas de ciência.

Tanto o real quanto o irreal são importantes na nossa interpretação da realidade. A ficção entretém, questiona, instiga e faz pensar.

O que esperar do futuro? Imagine. Irá acontecer.