O silêncio não existe, e isso precisa ficar claro desde já. Não que não exista; existe, mas não pode ser apreciado por nenhum de nós, os que respiramos. Portanto, para todos os efeitos ele não existe, não pode existir enquanto pudermos dar nomes às coisas. O silêncio pertence à ordem das ideias, da fé: tendemos ao silêncio, cada vez mais, à medida que tudo depende do cérebro, de uma educação múltipla para a produção eletrônica; mas existe algo antes dele, esse limite último, uma tendência a calar, sem no entanto silenciar.
Trata-se de um absoluto que é demolido pela simples enunciação da palavra, pelo simples pensar sobre ele, e aqui recorro um pouco à física de botequim: o som se propaga pelo ar, todos deveríamos saber disso, e aquelas explosões em batalhas no cosmos, que acompanhamos desde miúdos em filmes de ficção científica, não passam de açúcar para os olhos. Uma explosão no espaço seria triste, contida, silenciosa, se isso fosse possível, e monótona do ponto de vista do fenômeno – uma implosão, se preferir. Nada de labaredas ou kaboons. Ainda que nos desloquemos para o espaço, onde, sem o ar, nosso silêncio ideal seria teoricamente possível, na prática seria impraticável apreciá-lo: nosso corpo produz ruídos todo o tempo. Só a morte o silencia, e, ainda assim, nem ela não o faz de imediato.
Faça a prova: tente silenciar. É tão impossível quanto tentar se suicidar ao prender a respiração. Se existe o som da respiração, se existe o ruído na barriga, se existe a cacofonia de pensamentos em nossas mentes, não existe silêncio. O silêncio é o inimigo da vida. O silêncio, como o nada (outro absoluto), é análogo à morte. Só os mortos são silenciosos.
Por silêncio então entendo seu limite: as alusões, os subentendidos rápidos, que se oferecem à interpretação, o vacilo antes de falar, aquilo que ainda não tem nome ou que nunca terá, o inefável. A fragilidade de algo que é temporário: o silêncio sempre se refugia entre dois sons. E esse silêncio ordenado entre dois sons, bem, esse pode ser chamado de música. Sua antítese, o ruído, cada vez mais corriqueiro; sua expressão mais útil, a ordenação da harmonia.
Criar ambientes que projetam essa música de maneira mecânica é meu ofício. Como no filme de David Lynch, este último, surrealista, Club Silêncio de Mulholand Drive, é um paradoxo: não existe clube silencioso, e esse silêncio só pode ser interpretado por outras chaves. Dependo do silêncio e, ao mesmo tempo, todos os dias, preciso conjurá-lo: um clube de música representa a antítese deste, e também o seu limite: antítese, pois o silêncio é afastado pelas centenas de decibéis projetados pelas caixas de áudio; e aproximação do seu limite, porque a música não só é silêncio ordenado, mas também, em um clube, tem a função de calar pelo volume e pela intensidade. Essa tensão entre o limite do silêncio, a música, e sua antítese, o barulho ensurdecedor, é meu frágil abrigo.
Em um clube, a música precisa ser anatômica. Para cumprir a função de potencializar os estados de humor, deve ser captada por outros sentidos; tem de ser também tato e visão. A luz de um clube precisa saber traduzir em intensidades de cores as batidas sonoras; as frequências projetadas pelo subgrave precisam chegar até a pele. Em um clube, a música poderia e deveria ser apreciada por surdos.
Ao mesmo tempo, a música em um clube cria um silêncio metafórico e subjetivo. Sim, existem a festa e a celebração de vida, que dão razão de existência à música, mas também existem o triste torpor e a encenação falsa do imperativo da felicidade obrigatória e compartilhada através de meios tão sintéticos quanto esta, e as redes sociais estão aí como um exemplo quase palpável dessa expressão. Não existe miséria em rede social: no máximo, uma denúncia estéril desta.
Não importa estar feliz, e sim parecer feliz. O silêncio gera a reflexão, a reflexão cria ameaças para este delicado estado de felicidade, daí a razão de existência dessa música, em tão alto som em um clube, que chega a ser física, que precisa calar, porque não podemos refletir sobre o fato de que, bem, não temos lá muitas razões para expressar tamanha felicidade, o que não nos impede de estar felizes vez ou outra.
Em nenhum outro lugar o silêncio encontra tantas peles quanto em um clube: é ali, paradoxalmente, pela sua falta e pelo seu ordenamento, que o silêncio existe com mais intensidade e que pode ser apreciado de tantas maneiras, sejam estas objetivas ou subjetivas. É em um clube que o silêncio, estranhamente, tem sua expressão máxima. Finalmente faz sentido pra mim Lynch chamar o espaço onde se encontram os protagonistas de Mullholand Drive de Club Silêncio.
Club Silêncio
por Facundo Guerra