“Seus delírios oníricos ganharam a forma de longa-metragens de sucesso”
Há pouco tempo revi um filme que não teve boa bilheteria quando lançado, em 1995, mas que acho atemporal e divertidíssimo: Marte ataca. Dirigido por Tim Burton, é uma homenagem declarada aos filmes B dos anos 1950 e 1960, presentes em várias filmotecas geeks mundo afora.
A peculiar filmografia de Burton é calcada em uma estranheza quase gótica, em que eventualmente um personagem sente-se deslocado e tenta ser aceito de alguma forma. Suas atmosferas sombrias e surreais e a perene fascinação pelo macabro misturam-se com uma abordagem delicada e doses de humor que definem seu estilo. Tão marcante é sua assinatura cinematográfica que se tornou um adjetivo. Burtonesque já figura em vários dicionários e descreve tudo o que se assemelhe ao estilo característico do diretor.
Perguntado uma vez sobre suas grandes inspirações, citou, ao lado do escritor Edgar Allan Poe, o artista Walt Disney. Burton desenhava desde criança e nunca escondeu que o maior presente de sua vida foi, ao terminar o colegial, ganhar uma bolsa de estudos de animação no Instituto de Artes da Califórnia, ou apenas CalArts. Fundado em 1970, o instituto contou com a doação do terreno e o empenho pessoal de Walt Disney.
Ao graduar-se, Burton foi contratado pelo Walt Disney Studios como animador e teve seus próprios curtas-metragens produzidos pelo estúdio. Impressionados com o talento do jovem e seu tétrico Vincent, deram sinal verde para a produção de seu próximo curta, Frankenweenie, de 1984. Já nas primeiras exibições-teste, segundo avaliação da diretoria do estúdio, o filme não condizia com o padrão da Disney e foi arquivado. Apesar de ter sido demitido porque seus curtas eram sombrios demais para crianças, nos anos seguintes tanto a Disney quanto outros estúdios apostaram em projetos do jovem diretor e, enfim, seus delírios oníricos ganharam a forma de longas-metragens de sucesso.
Assim como Burton, Walt Disney interessou-se por desenho muito cedo e descobriu na animação uma ótima ferramenta para dar vida a seus sonhos. Aperfeiçoou técnicas existentes e criou muitas outras, ousou e conseguiu inovar, sempre seguindo sua imaginação. Além de cativar os corações e mentes de gerações inteiras, Disney elevou a animação ao status de arte. Em sua trajetória de contador de histórias, divertiu-se e nos encantou. Foi um talento único.
Quando Disney começou a fazer animações, nos anos 1920, o ultrapopular gato Felix, criação dos Sullivan Studios, ditava as cartas, e as animações mudas eram direcionadas a um público mais adulto. Todos os demais estúdios tentavam criar o “novo Felix”. Em 1928, Disney lançou Steamboat Willie, que mudou para sempre o modo como as animações eram concebidas. O ratinho Mickey Mouse estrelava a animação, pioneira no uso do som sincronizado com a imagem. A animação sonora com o espevitado Mickey foi revolucionária para a época e a mudança de percepção foi amplamente aprovada pelo público. Disney fez sua audiência sonhar.
O estrondoso sucesso possibilitou ao estúdio de Disney continuar produzindo fábulas para o cinema e, desta vez, a concorrência é que teve de correr atrás. Dez anos depois, ao lançar o primeiro longa-metragem de animação da história, Branca de Neve e os sete anões, Disney cativou de vez seu público. A partir desse marco, poderia fazer o que quisesse, o céu era o limite. Disney adentrara em um processo criativo desenfreado. Criou com sucesso programas de TV para uma audiência infantojuvenil, concebeu um parque-temático e produziu muitos filmes. Então, em 1964, experimentou um novo formato para o filme Mary Poppins, uma mistura de desenho animado com live action, que obteve catorze indicações e ganhou cinco Oscars.
Disney mudou o mundo com seus filmes, animações e parques. O curioso é que tudo realmente começou com um rabisco do que viria a ser Mickey. Mesmo após sua morte, em 1966, a assimilação da filosofia de trabalho de Walt Disney foi determinante no sucesso de longas e curtas-metragens premiados. Em mais de oito décadas, uma galeria de personagens inesquecíveis: Mickey, Donald, Pateta, Dumbo, Bambi, Mogli, Simba, Nemo, Wall-E, Sr. Incrível, Buzz Lightyear e, desde 2012, Luke Skywalker e sua família disfuncional.
Vários destes personagens foram criados pelo atual diretor de criação da Disney, John Lasseter (diretor de Toy Story) e por Brad Bird (diretor de Os Incríveis). Ambos foram colegas de Tim Burton no curso de animação da CalArts.
Em 2013, após o sucesso de Alice no País das Maravilhas, que teve mais de 1 bilhão de dólares de arrecadação, Burton teve liberdade total da Disney Pictures para dirigir Frankenweenie, um remake de seu curta-metragem engavetado de 1984, recriado para ser um longa-metragem de animação stop motion. Apesar de o filme ser infantil, também é dramático e, não por acaso, um dos mais autorais de Burton. O filme faz referências a Bambi, Rei Leão e Branca de Neve e os sete anões, todos de Walt Disney. Segundo Burton: “Estes longas têm em comum elementos assustadores e a morte.” Para ele, “Frankenweenie é um filme clássico da Disney”.
A capacidade de poder realizar um filme adulto e infantil ao mesmo tempo é marcante tanto no trabalho de Tim Burton como no de Walt Disney. Ambos nunca perderam o sentimento de curiosidade e o encantamento da infância.
Muito obrigado, Walt e Tim.