Pode parecer estranho, ou minimamente contraditório, usar uma frase do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, como ponto de partida para uma reflexão sobre as empresas e os seus legados. Mas, como maravilhosamente trabalhado no livro de título homônimo de Marshall Berman, “ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição”, onde buscamos continuamente o desenvolvimento e a transformação, enquanto tememos a desintegração de tudo o que somos e do que fizemos – em mundos que são produtos da poeira de mundos anteriormente sólidos. É nesse contexto que as empresas deveriam pensar sobre seu legado.
É inegável o efeito que uma empresa com legado tem nas pessoas. Alguns de nós já devemos ter enfrentado fila razoável para comer no mais antigo restaurante do mundo em funcionamento somente porque está lá desde 1725. Resistir ao tempo, porém, é somente uma das características de um legado. O impacto nas nossas vidas e no mundo é outro. Se pensarmos que legado é algo que transcende a empresa e permanece como valor para a sociedade, podemos refletir sobre como criar empresas que sejam capazes de ultrapassar suas próprias fronteiras e contribuir positivamente para a evolução da vida. Assim, como um autor ou criador se perpetua em sua obra, o que faz o sonho de um indivíduo ou de um grupo manter-se vivo através de uma empresa, em um mundo em transformação, e continuar a transformá-lo (positivamente) ao longo do tempo?
Como o próprio Berman advoga, manter vivos os laços que nos ligam às modernidades do passado é uma forma de nos renovar e nos preparar para os percalços de hoje e de amanhã. Assim, não é à toa que os grandes estudiosos do tema no mundo corporativo – como Jim Collins e Richard Barrett – enfatizam aspectos como propósito, visão, princípios e valores como elementos imutáveis e essenciais para uma empresa construir seu legado.
Em alguns de seus livros, Collins nos fala sobre empresas visionárias – empresas que têm esses elementos em comum e que prosperam independentemente da obsolescência de mercados específicos, de mudanças na liderança e de sucessões. Princípios e valores, por exemplo, não perdem sua essência porque refletem aquilo que é mais importante para os fundadores e orientam a tomada de decisões no decorrer do tempo. Mantêm-se para as gerações futuras, mesmo sob circunstâncias externas diferentes, em momentos de crise e de prosperidade.
A clareza de propósito também é essencial. Para que existe a empresa? O que deixaria de acontecer caso deixasse de existir? Por que isso é importante? O lucro não deveria ser a resposta a essas perguntas, mas, sim, um meio para atingir objetivos amplos, fundamentais e duradouros. Como argumenta Collins, “não vimos a ‘maximização da riqueza dos acionistas’ nem a ‘maximização dos lucros’ como sendo a força impulsionadora dominante ou o objetivo primário ao longo da história da maioria das empresas visionárias”. Junte-se a este propósito uma visão de futuro inspiradora, capaz de engajar e motivar pessoas, e temos aí uma base para começar a construir um legado.
Mas, mesmo sendo condições necessárias, serão suficientes?
Não, não serão. Há outros aspectos que precisam ser pensados sob o risco de nos desmancharmos no ar.
O primeiro é a capacidade de realizar o sonho como imaginado. Engajar pessoas, mobilizar recursos e propagar continuamente a essência da empresa não é tarefa simples. Requer, no mínimo, muita disciplina e criatividade, como atestam os inúmeros casos estudados por Collins e outros autores.
Um segundo aspecto diz respeito ao entendimento sistêmico do papel da empresa. Em uma era onde empresas adquiriram uma importância global, em um mundo cada vez mais conectado e superpopuloso, onde os recursos naturais estão se esgotando rapidamente, não basta olhar isoladamente para o que a empresa produz. Segundo as leis do pensamento sistêmico (Peter Senge, A quinta disciplina), causa e efeito não estão necessariamente próximos no tempo e no espaço. Uma empresa precisa entender diligentemente os impactos de suas ações em várias esferas (social, econômica, ambiental etc.) e se responsabilizar por eles para não gerar um legado negativo e destruidor.
Finalmente, observa-se um ceticismo generalizado e uma falta de confiança crescente das pessoas em governos, empresas e seus líderes. Pesquisas como o Edelman Trust Barometer indicam uma crise de liderança: menos de um quinto das pessoas acredita que esses líderes falem a verdade (impulsionadas talvez por recentes crises e altos índices de corrupção). Mas, em se tratando de legado, aqui fica uma reflexão: como conciliar a responsabilidade cada vez maior das empresas com essa falta de credibilidade?
Afinal, como diria Shakespeare, “nenhum legado é tão rico quanto a honestidade”.