#16RenascimentoCulturaSociedade

Confiança e cultura

por Eduardo Augusto Pohlmann

Feltros, de Felipe Cohen (2010)

No início da sua magistral série Civilisation, Kenneth Clark elenca algumas condições que ele reputa indispensáveis para a civilização: “confiança na sociedade na qual se vive, crença na sua filosofia, crença nas suas leis, e confiança nas suas próprias faculdades mentais. Vigor, energia, vitalidade: todas as civilizações tiveram um peso de energia por trás delas.”

Sim, é possível haver culturas e épocas que nasçam e se desenvolvam no medo, no desespero, no tédio, até mesmo no que George Steiner chamou de “o grande ennui” que dominou a Europa do século XIX. Mas, para haver civilização, é necessário haver permanência, e para haver permanência, é necessário confiança.

Qual o estágio atual da confiança que depositamos nos valores, obras e símbolos da civilização ocidental? Gostaria de utilizar um exemplo pessoal para instigar o leitor. Quando, na Inglaterra, participei de um evento chamado The Academy, promovido pelo think tank londrino Institute of Ideas, o evento compreendia uma série de palestras e debates sobre clássicos, história e literatura, e seu objetivo declarado era “lembrar-nos de como deveria ser a universidade: um lugar em que o conhecimento é buscado como um fim em si mesmo, e não apenas como um degrau na escada da mobilidade social”. As nossas companhias, durante os três dias de debates sobre artes liberais e humanidades, seriam livros de grandes autores que pensaram sobre grandes temas e pessoas interessadas no assunto – uma rara defesa do prazer da conversação sobre temas perenes. Para participar como bolsista, era necessário responder a uma pergunta: “deveríamos celebrar a morte da alta cultura ocidental?”

Meu espanto começou quando as respostas foram lidas, e continuou nas interlocuções com os demais colegas. Sendo um evento dedicado aos apreciadores da alta cultura, esperava encontrar ali, perdoem-me a analogia forçada, uma espécie de Corte de Urbino, um local em que os valores que informam o cânone ocidental não estariam em questão. Mas o que mais ouvi foi a mesma litania monocórdica que pervade as humanidades: a dúvida quanto aos próprios valores, a crítica do cânone (acusado de contemplar apenas o dead white European male), a erosão da autoridade, aqui e ali defensores das teses mais radicais do multiculturalismo – como a de que toda cultura possui idêntico valor.

Há vários fatores para esse fenômeno, mas eu gostaria de enfatizar um: a relação entre as críticas à cultura ocidental e a sensação de culpa pelos crimes do imperialismo europeu. Atualmente, a admiração pelas grandes obras e homens da cultura ocidental soa aos ouvidos mais sensíveis como uma vergonhosa defesa e legitimação da sua imposição à força sobre outras culturas. Ou, ainda, que ao defendê-la necessariamente o mérito das outras seria totalmente negado. Assim se parte para o movimento inverso: para expiar a culpa pelo passado, se valoriza a cultura estrangeira em detrimento da própria – quando esta não é desprezada por sua infame ligação com o colonialismo, a exploração, a escravidão etc.

Ora, não deveria ser necessário dizer o óbvio: considerar uma cultura superior (e foge ao objetivo do artigo examinar seus traços distintivos) não implica desprezar as outras ou defender que aquela deve ser imposta à força. Se podemos celebrar nosso cosmopolitismo e abertura às contribuições das culturas mais remotas, isso não precisa vir acompanhado do desprezo ao nosso rico e complexo legado cultural. A apreciação estética não condescendente ou paternalista daquelas obras (para citar apenas um exemplo, tome-se a belíssima arquitetura islâmica) que se situam fora do que se convencionou chamar de civilização ocidental pode tranquilamente andar ao lado da confiança nos valores e atitudes que tornaram possíveis as obras da nossa tradição. E convenhamos: quando se tem nomes e obras como as que nós temos, não deveria ser difícil readquirir tal confiança.