#17CulturaLiteratura

Conversa com Julia Cameron

por Ester Macedo

Conheci o trabalho de Julia Cameron no Canadá, quando estava completamente estagnada na escrita da minha tese de doutorado no final de 2009. Um ano e meio depois, já com a tese defendida, e de volta à Brasília, conversando com amigos decidimos seguir a proposta do livro de nos encontrar toda semana para ler e discutir um capítulo de The Artist’s Way (sem tradução para o português). Mas como não conseguimos encontrar uma versão em português, decidi eu mesma ir traduzindo e enviando um capítulo por semana para nossa discussão. Foi uma experiência bastante rica, e foi consenso de todos no grupo que era uma pena esse trabalho não ser mais conhecido por aqui. Essa entrevista é um passo nesse sentido.

Amarello: A fé e a espiritualidade são o centro de seu trabalho, e mesmo para aqueles que não acreditam em Deus, você apresenta a criatividade como prática espiritual. Ao longo de todos esses anos, você notou muitas mudanças nas pessoas com quem trabalha, quanto à atitude delas em relação a Deus, fé, espiritualidade e religião?

Julia Cameron: Me parece que algumas pessoas se tornaram mais mente aberta. Elas estão dispostas a explorar a criatividade como caminho espiritual, e estão mais dispostas a enfrentar a própria resistência.

A: E a sua própria relação com Deus, espiritualidade e religião? No seu trabalho, você demonstra bastante conhecimento em relação a diferentes tradições espirituais. Você tem alguma filiação religiosa? Você sente que sua atitude em relação a Deus, espiritualidade e religião mudou ao longo dos anos?

JC: Eu não pertenço a uma religião organizada, mas já li muito sobre o assunto e tenho um carinho particular pelo uso da própria criatividade como caminho espiritual. Eu recentemente terminei de escrever duas peças, e durante o processo de escrita fiquei muito consciente de que precisei de fé para colocar minhas ideias no papel. Eu rezava toda noite por orientação e inspiração, e muitas vezes me senti guiada quando me voltava ao papel. Existe um livrinho de preces pelo qual tenho um apreço especial: é o Ideias Criativas, de Ernest Holmes. Leio esse livro de preces toda noite, e me vejo concordando com suas ideias. Eu mesma escrevi quatro livros de preces que estão organizados em uma espécie de “buquê” no livro de preces Preces ao Grande Criador. Tenho que admitir, às vezes eu leio minhas próprias preces e penso “Quem escreveu isso?”.

A: Por outro lado, como os líderes de religiões organizadas – por exemplo padres, pastores, rabinos, monges budistas, etc. – reagem em geral ao seu trabalho?

JC: Eu vejo que meu trabalho é amplamente aceito, e muitas religiões diferentes se identificam com suas ideias. Por exemplo: sufis pensam que eu sou sufi, budistas pensam que eu sou budista, cristãos pensam que eu sou cristã.

A: Em seu trabalho, você fala dos bloqueios mais comuns à atividade criativa, que vem em grande parte de um imaginário nocivo sobre o que é ser artista. Ao longo dessas décadas, você tem notado alguma mudança nesse imaginário e na maneira que esses bloqueios se apresentam?

JC: A essa altura, quatro milhões de pessoas já praticaram o The Artist’s Way. Muitos deles continuam a prática das “Páginas Matutinas” e as “Saídas de Artista” anos após sua primeira exposição às ideias. Ontem à noite, quando eu fui ao teatro, fui abordada por uma jovem que me perguntou “Você é a Julia Cameron, não é?” e eu disse que sim, e ela disse “Eu estou fazendo as “Páginas Matutinas” há cinco anos agora, e eu recentemente terminei de escrever um livro. Eu só queria te agradecer pelo seu trabalho – foi um guia para mim”. Ao longo dos últimos vinte anos os mitos e bloqueios me parecem ter permanecido os mesmos. As mesmas ferramentas funcionam tão bem agora quanto há vinte anos atrás.

A: É possível viver da arte? Você recomendaria alguém a abandonar outras profissões (regulares, estáveis) para se dedicar exclusivamente a uma atividade artística? É possível desfrutar dos benefícios da arte mesmo não sendo um artista em tempo integral?

JC: Eu acredito que todas as pessoas são criativas, e que todos podemos nos beneficiar da prática com ferramentas de criatividade. Eu não encorajo pessoas a tomarem grandes passos para os quais não estão prontas. Em vez disso, peço para elas trabalharem fazendo pequenas mudanças. Mudanças grandes muitas vezes começam com mudanças pequenas. Ontem à noite conheci uma jovem que, trabalhando com as ferramentas de The Artist’s Way, havia se mudado de uma vila remota na montanha para uma cidade grande onde as oportunidades para exercer sua criatividade eram infinitas. Muitas pessoas se dão conta de que não precisam largar seus empregos para praticar a criatividade expandida.

A: Uma das ferramentas centrais em seu trabalho são as “Páginas Matutinas”: três páginas escritas a mão com o que vier à cabeça, diariamente, um “dreno mental”, como você diz, para começar bem o dia. Você descreve muitas vezes a importância delas em sua própria vida. Assim como uma rotina de exercícios saudável, algumas pessoas tem dificuldade de manter esse hábito diariamente, ou mesmo com uma rotina bem estabelecida, às vezes ocorrem de pular um dia, ou uma semana ou semanas. Isso acontece com você? Depois que você começou a utilizar as “Páginas Matutinas”, qual foi o máximo de tempo que você ficou sem escrevê-las?

JC: Eu venho escrevendo as Páginas Matutinas consistentemente há uns vinte e cinco anos. Eu nunca passei mais de alguns dias sem escrever as páginas.

A: Muitas pessoas sentem que não podem ser artistas porque já são pais – seus filhos são o trabalho criativo ao qual precisam se dedicar. Quais conexões e desconexões você enxerga entre ser um pai ou uma mãe e a vida de artista?

JC: Aqui eu preciso falar por mim mesma: eu era mãe solteira quando comecei a escrever – e a ensinar – o The Artist’s Way. Eu escrevi, junto com Emma Lively, o livro intitulado The Artist’s Way for Parents. Esse livro detalha ferramentas e técnicas que ajudam pais a fomentar a própria criatividade, e a de seus filhos. A meu ver, não existe um conflito duradouro entre ser pai ou mãe e ser artista. As pessoas me pediram por muitos anos para escrever esse livro, e eu sempre negava, falando “É só trabalhar com o The Artist’s Way”. Então, quando minha própria filha casou e engravidou, eu me vi pensando que talvez precisasse sim existir uma orientação mais aprofundada. Aí então Emma e eu escrevemos o livro.

A: Em um assunto relacionado, alguns membros do grupo estavam se perguntando se seria apropriado trazerem seus filhos adolescentes para os encontros: por um lado, parece um ótimo jeito de estimular seu lado criativo; por outro, crianças e adolescentes não parecem ter tido experiências – ou mesmo bloqueios – o suficiente para precisarem de uma recuperação artística. Você acha que existe uma idade mínima recomendada para a pessoa conseguir se beneficiar do The Artist’s Way?

JC: Eu me vejo assumindo uma postura protetora em relação a pais e adultos. Na minha experiência, eles estão sempre muito dispostos a colocar o foco nas pessoas jovens, negligenciando suas próprias necessidades. Então eu diria que não – não leve os filhos para os encontros. Mas eu acho também que a prática das “Páginas” pela manhã pode beneficiar crianças de doze anos para cima. Adolescentes anseiam por privacidade, e as páginas dão a eles exatamente isso. Eu sugeriria usar as “Páginas Matutinas”, “Saídas de Artista” e caminhadas como ferramentas apropriadas tanto para adolescentes quanto para adultos. Pode ser que eles já tenham se deparado com situações que os bloqueiam. Não se preocupem muito com isso – os deixem encontrar o próprio caminho.

A: Você também diz que nunca se é velho demais para descobrir o próprio artista interior. Você tem ou conhece alguém que tenha experiência trabalhando o The Artist’s Way com idosos?

JC: De novo, a sua pergunta é bastante certeira: o livro no qual estou trabalhando agora com Emma é um livro sobre criatividade na terceira idade. Na minha experiência de professora, aqueles que estão na casa dos sessenta, setenta e oitenta muitas vezes são os que experimentam os avanços mais significativos e alegres.

A: Na introdução do The Artist’s Way você descreve um tempo em que atingiu o fundo do poço, e diz que as ferramentas ali apresentadas ajudaram você a superar aqueles tempos difíceis, em especial sua luta contra o alcoolismo. Você tem ou conhece alguém que tenha experiência trabalhando o The Artist’s Way com pessoas em situações difíceis, como em hospitais ou em centros que lidam com vício, doenças físicas ou mentais, ou conflitos com a lei, por exemplo?

JC: The Artist’s Way é um kit de ferramentas terapêuticas. Eu já ouvi de muitos casos de utilização do livro em centros de reabilitação, centros para idosos, hospitais, prisões e afins. Não tenha dúvida: as ferramentas são um bálsamo eficiente para muitos indivíduos que estão passando por dificuldades.