Num dia de sol, os pais levaram o filho pequeno ao parque. Foi a primeira vez que o menino viu crianças descendo no escorrega, e elas riam muito. Ele pediu para ir ao brinquedo. Esperou na fila, e, ao chegar a sua vez, começou a subir os degraus do escorrega. Foi então, a meio caminho, que se deu conta da altura em que se encontrava. E o que antes parecia divertido se tornou perigoso. O breve instante ao estancar foi suficiente para que as crianças atrás dele reclamassem. Não havia como retroceder. Sob pressão crescente, chegou ao alto, e então descortinou o abismo de metal à sua frente. Sentou, e agarrou firme o corrimão quente do sol. Atrás, as crianças gritavam “Vai!”. Adiante, o abismo, e, lá embaixo, tão longe, seus pais. Eles sorriam e repetiam que não tivesse medo, que soltasse as mãos, que ia ser divertido. Em algum momento pronunciaram a palavra que o guiaria por toda a vida: “Confie!”. Súbito, o vento intenso refrescou o dia quente, a velocidade acelerava, e por fim ele nem chegou a tocar o chão. Firmes eram as mãos do pai que o pegou e ergueu de chofre. Ambos riram.
Lentamente o tempo transformou o menino em adolescente. Depois, o mesmo tempo, que antes demorava a passar, precipitou-se qual a descida no escorrega e se fez cada vez mais célere. O jovem precisava trabalhar e, porque confiaram, foi contratado. Recebeu o diploma e perguntou a si mesmo se os alunos acreditariam em um professor recém-formado. Quando os pais se fizeram invisíveis, em meio à noite e sozinho, para poder seguir adiante precisou confiar. Ao se ordenar monge, rasparam-lhe a cabeça e disseram que a chave era Shinjin, a Mente Confiante. Nasceram os filhos, e, na primeira febre, ele tinha de acreditar: “Há de passar!”. O tempo, que antes corria em anos, acelerou em décadas. O outono chegou, a filha completou 18 anos, embarcou para estudar no exterior, e o editor da revista Amarello o convidou para escrever sobre a fé, a Mente Confiante.
Assim foi com ele, e algo semelhante vai sucedendo a todos os seres humanos enquanto a esfera azul gira sobre si mesma e se move (sem consultar seus habitantes) com extraordinária celeridade em torno de uma esfera chamejante. Enquanto isso, aqui no cenário dos fatos que nos dizem respeito, seguem alternando-se infalivelmente claridade e escuridão, frio e calor, marés que sobem e descem. Bebês nascem sabendo chorar, crianças sabem crescer, adolescentes sabem tudo, adultos sabem ter pressa, idosos sabem esperar, e cada um, na hora que é sua, sem saber como, se torna invisível.
O bípede implume não controla o girar da esfera azul, nem o movimento dela em torno da esfera flamejante, nem o movimento das estrelas, tal como não pode impedir a partida daqueles que se tornam invisíveis. Frente ao que não podemos controlar, restam-nos duas alternativas: revoltarmo-nos e sofrermos, ou confiarmos e vivermos contentes.
“Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.”
— Alberto Caeiro
A Mente Confiante tem a lucidez simples que tantas vezes nos falta. É preferível gostar que as coisas que não podemos controlar sejam tal como forem, pois não gostar em nada altera o fato, apenas acrescenta dissabor a quem o vive.
“Bela tigela
Arrumemos flores
Pois não há arroz”
— Matsuo Basho (1644-1694)
Quanto às coisas que podemos controlar, a Mente Confiante nos lembra que, além de empenhar todo esforço possível para as controlarmos, é preciso também gostar que mesmo elas às vezes se rebelem e não se deixem controlar, pois sempre existirão ocasiões em que será assim.
Quem deseja que as coisas aconteçam de outra maneira que não aquela em que acontecem crê saber mais e melhor que o universo qual o rumo que os acontecimentos deveriam seguir. Tal pretensão de sapiência está fadada à frequente frustração, pois a vida flui livre e imprevisível. O sol nasce a leste e se põe a oeste indiferente às nossas opiniões e desejos. Quando o Mestre Dogen Zenji (1200-1253) voltou ao Japão e lhe perguntaram sobre o que aprendera na China, sua resposta foi: “Que os olhos são horizontais e o nariz é vertical.” O bom senso recomenda que a pequenina e frágil criatura concorde com a independência do universo e aprenda a gostar do que acontece, pois não há alternativa ao sucedido.
Sabemos pouco, podemos menos, e ignoramos demais. O que temos diante de nós é desconhecido, desde quando nascemos até quando disserem que morremos. No breve intervalo entre uma coisa e outra, podemos aprender e crescer com tudo o que sucede. Quem aprende usufrui, quem não aprende reclama. Viver exige ousar, e ousar supõe confiar.
Existimos no interior do cosmos e a vida, que é dele, passa por nós, que somos parte de tudo quanto vemos e não vemos.
“Meu cavalo sobre o campo.
Ploc, ploc,
Ah, ah, sou parte da cena!”
— Matsuo Basho (1644-1694)
Nada é alheio no interior do grande organismo universal. A alegria extática de Basho nascia da consciência de ser uno com todos os seres, com o campo, o cavalo, a chuva, o sol, a lua, as formigas. Em tudo e em todos ele se reconhecia, e o quanto lhe sucedesse ele convertia em poesia, tal como também o fazia Kobayashi Issa.
Vou sair.
Divirtam-se fazendo amor,
Moscas da minha cabana.
— Kobayashi Issa (1763-1827)
A precisão do movimento das estrelas no céu, a alternância invariável das marés e a sequência infalível das estações na terra evidenciam uma ordem inerente a tudo. A Mente, no interior da qual somos pensados, confia que cedo ou tarde confiaremos que o mesmo poder que move a vida do cosmos em toda parte move também, com infalível precisão, esta nossa breve e imperfeita existência. Não a move como fatalismo, mas como o dançarino exímio gira com sua amada para mútua alegria. Move-a, tal como os pais dizem ao filho “Confie!” para que o menino largue as mãos que se aferravam e deixe-se fluir na liberdade da existência confiante.
O velho monge agonizava. Em torno e mudos, os seus discípulos. Um pássaro próximo começou a cantar e persistiu tempo suficiente para o monge esboçar o derradeiro sorriso e balbuciar seu último Haikai: “Pequenino pássaro, desculpe. Vou ouvir o final de seu canto no outro mundo.” Sorrindo, um ser humano confiante expirou enquanto o pássaro ainda trinava seu longo, belo e alegre gorjeio.