Amarello Visita: OSESP
Conte-nos um pouco do seu background. Como você se interessou por música?
Leandro Oliveira: Estudo música desde meus 5 anos e comecei a pensar em me profissionalizar aos 15. Nasci e estudei no Rio de Janeiro, e o início foi muito difícil; não tinha músicos na família, e era um interesse puramente pessoal. Existia uma certa resistência da minha família, em relação ao estudo da música, mas certamente uma resistência em me tornar um profissional da música. Meus pais são de classe média baixa do Rio. Não tinha a menor possibilidade de imaginarem um músico na família! Ainda mais eu, que tinha uma certa sensibilidade para música clássica. Era muito distante. Minha mãe queria que eu fosse funcionário público ou algo assim. Ela imaginava uma carreira um pouco mais consistente, que fosse mais “garantida”. Médico! No meio da faculdade, comecei a buscar professores particulares, e encontrei uma figura importante, um professor israelense de piano, Mordehay Simoni, e com o tempo fui me aperfeiçoando na lida mesmo. Tive a oportunidade de passar alguns pequenos períodos na Itália, acompanhando algumas produções, e de trabalhar com o maestro Neschling, tanto lá como na Suíça, e sobretudo aqui na Sala São Paulo. Até que, aos 25 anos, ele me convidou para vir trabalhar efetivamente aqui, e me tornei uma espécie de aprendiz de maestro, literalmente, um aprendiz de feiticeiro, até conseguir entender essa loucura que é uma orquestra sinfônica. Na época, eu já estudava regência, compunha e era pianista de formação. Porém, a engrenagem de uma orquestra é tão complexa que, para nós, que vemos de fora, é quase uma coisa esotérica, um mundo de castelo encantado, cheio de trâmites administrativos. Foi nesse espírito que passei meus quatro primeiros anos. Tirei um período sabático e, quando retornei foi para fazer isso que faço agora, que é o Falando de Música – as apresentações para o público em que explico o programa antes dos concertos da OSESP, para cada temporada.
Como você acha que o espaço onde você trabalha – especialmente a Sala São Paulo – influencia em seu processo de criação e em seu trabalho?
A Sala São Paulo é um lugar muito magnético! Na verdade, antes de vir morar aqui, o meu tesão era vir para a Sala São Paulo. Lembro claramente de alguns ensaios que assisti aqui no final dos anos 1990, logo depois da inauguração, em 1999. Fiquei muito ansioso, querendo fazer parte disso tudo, era efetivamente muito galvanizante. É muito impressionante o que a Sala São Paulo entrega para quem está aqui. Ela funciona como uma espécie de fantasia de civilização! Quando trabalhamos com música clássica, essa fantasia acaba sendo muito ocorrente porque estamos em diálogo com um monte de gente morta, com várias estéticas diferentes. É uma coisa muito inclusiva por necessidade. Na música clássica você tem um som vanguardista e o conservador do século XVIII, todos lidando com a mesma matéria-prima. Isso eu acho a coisa mais bonita; um gesto civilizatório. A Sala São Paulo, de alguma forma, no meio dessa cidade caótica, acaba preservando esse sonho, essa fantasia. Do ponto de vista emocional, eu sempre saio da aula melhor que antes, naturalmente. Isso me dá energia pra fazer mais aulas e melhores.
É um sonho mesmo ou uma realidade?
É um realidade! Claro que existem todos os meandros aqui da Sala, coisas muito do dia a dia. Prazos a serem cumpridos, funções que não são as mais inspiradoras, e que nem o artista que está estudando Chopin, necessariamente, deveria fazer. A despeito disso, o lugar é muito inspirador.
Nos conte um pouco sobre como funciona seu processo de criação.
Lido de uma maneira muito pouco ortodoxa com a criação. Nesse sentido, eu me sinto um artista menos inspirado. Estou muito longe de ser um artista angustiado, que precisa compor por força da necessidade. Trabalho meio de labuta, com objetivos. Sento todo dia, por meia hora, para fazer exercícios de composição, mas também tenho prazos que preciso cumprir em um momento ou em outro. Acabo sendo muito pouco dionisíaco! Trabalho pelo time. Funciona muito bem para mim. Mas tenho amigos mais catárticos. Quando a gente pega a execução como momento da criação, a performance fica muito evidente sem a rotina do estudo diário do piano e da regência. A inspiração do momento é algo com que conto quase nunca – muito pouco, na verdade. Também preparo minhas aulas continuamente. Por exemplo, vindo pra cá e lendo Bulgakov, tive insights para a aula. É algo que se integra ao meu dia a dia.
Você acha que vem aumentando ou diminuindo o interesse das pessoas por música clássica?
Aumentando vertiginosamente. Sobretudo aqui em São Paulo, onde a amostragem é impressionante. Cheguei aqui há doze anos, e o interesse não só pelo consumo da música – de sentar na sala de concerto e escutá-la –, mas por entender o universo da música, que é uma coisa que exige um pouco mais de dedicação, aumentou muito! Não só querer comer bem, mas querer entender como se faz o prato. Você me entende? Isso em São Paulo é impressionantemente auspicioso. Percebo uma curva ascendente. Por exemplo, acabou de abrir a nova temporada do Theatro Municipal, e eles tiveram um aumento de número de assinantes de 50% em relação ao ano passado. Partindo do zero, conseguiram mais de mil novos assinantes no primeiro ano. Isso é, evidentemente, uma mostra de que ainda existe maior demanda do que oferta de música clássica no Brasil. E isso se mede não só pelas sociedades de concerto, mas também pelo interesse mais imediato que existe hoje. Minha empresa organiza conferências e cursos sobre música para pessoas que querem começar a se interessar por música clássica, e é impressionante o aumento da procura de novos alunos a cada semestre.
Por que você acha que existe esse aumento?
Tivemos no Brasil, durante muito tempo, uma falta de oferta de boa música, sobretudo nas grandes cidades, como São Paulo e Rio. Não tenho dúvida de que, se tivéssemos hoje mais três, quatro orquestras de alto nível em São Paulo, todas estariam bombando. A questão é que ainda essa demanda se organiza para dois ou três espaços existentes. Os músicos da OSESP, por exemplo, estão trabalhando no limite. Fiz um evento em São Carlos, uma cidade completamente fora do circuito. Apresentamos um programa com quinteto de cordas do Carlos Gomes, obras de Mozart, obras contemporâneas, e tudo estava absolutamente lotado! Trezentas pessoas aplaudindo de pé. Ainda existe uma energia de consumo que não foi completamente atendida. O mercado ainda não está estável, acho que ainda faltam atores que se proponham a explorá-lo mais.
Você acha que a música clássica é envolvida por uma espécie de formalismo que atrapalha o acesso das pessoas?
Sim, existe uma resistência que não é resistência sensível. O cara vai ao concerto e geralmente gosta. E isso não diz respeito à sua formação cultural, universitária, educacional ou intelectual. É temperamento mesmo. Tenho amigos que não aguentam uma sinfonia de Mahler, uma peça de cinquenta minutos, uma hora e dez. Mas, a despeito disso, tem também a forma das salas de concerto – que é um pouquinho proibitiva mesmo. Porque ainda estamos em uma tradição que é do século XIX, de ouvir concerto um pouco como se vai a uma igreja, onde o certo é ficar calado, onde o público está acostumado com essa relação de atenção em silêncio. É muito evidente, para mim, que isso diz respeito à couraça do consumo da música. É possível imaginar que exista muito mais gente que prefira escutar música clássica no carro, na rádio ou na TV, em casa, do que na Sala São Paulo, onde o sujeito pode – e isso não é um fato – supor que irá se deparar com uma plateia esnobe ou algo do tipo. Preciso dizer que, em alguns lugares na Europa, o acesso aos ambientes de concerto às vezes é muito mais fechado e esnobe, capaz mesmo de criar um constrangimento. Lembro de um concerto em Palermo – tudo bem, eu estava acostumado com o ambiente de música clássica no Rio – em que fui de tênis e fui muito malvisto. Fiquei constrangido, porque percebi que não deveria ter ido de tênis. Como disse, isso aconteceu em Palermo. Aqui, na Sala São Paulo, você vem ao concerto sábado e encontra todos os tipos de gente. Velho, jovem, aluno, gente da Zona Leste e de Higienópolis. É um convívio muito democrático, muito aberto.
Evoluímos na relação do público com a orquestra, ou podíamos ainda ser um pouco menos formais – conversar nos intervalos com a plateia, por exemplo?
Existem muitas iniciativas legais a respeito disso, e eu suspeito que não só no Brasil. Existe um projeto muito simpático com a Sinfônica de Salvador, com o maestro Carlinhos Prazeres, que bolou uma coisa em um espaço muito bonito, com almofadas no chão, a orquestra sem fraque, de roupa normal, e ele ensaia, toca, tudo conversando com a plateia. As pessoas deitam, conversam, e o formalismo é quebrado. O que acontece em relação a esse tipo de consumo é que ficamos com uma expectativa menor de atenção, que é o que faz com que o sujeito exija o silêncio antes e o silêncio depois, para criar a moldura para a música ser encaixada. Certamente, quando pegamos a música do século XVII e XVIII, os grupos de música antiga curiosamente estão muito preocupados com a questão filológica da música, com a dicção – mas não estão preocupados com a maneira que Bach tocava em sua época, em um café, por exemplo. Imagino que, quando Bach tocava as suas Cantatas Profanas num café em Leipzig, o público não tomava café em silêncio como se estivesse na Thomaskirche assistindo a um sermão. Muito pelo contrário. Aliás, nem o sermão na Thomaskirche, sabemos, era em silêncio.
Em que momento surgiu esse formato atual?
Foi quando começaram a cultivar uma tradição, músicos mortos, uma espécie de cânone. Com as primeiras instituições sinfônicas como museu, na Revolução Francesa. As primeiras salas de concerto no formato caixa de sapato surgiram nas décadas de 40 e 50 do século XIX. E com essas salas de concerto houve um ponto de virada muito curioso. Existem estatísticas que dizem que, até a primeira década do século XIX, 80% do repertório era de compositores vivos, e 20% de mortos; na década de 50 do século XIX, com esses primeiros edifícios como a Sala São Paulo, a história se inverte completamente, e as pessoas começam a ouvir os mortos como se estivessem falando com santos, e dá-se o distanciamento. A cultura de que assistir a música clássica é ter uma aula, é participar de algo elevado, em que você tem de estar à altura da ocasião, não existia, imagina, no passado. Mozart tinha de entregar o que o público queria. Era um jogo de eu dou, você me retorna. Se não gostar, eu melhoro para a próxima.
O que você acha de iniciativas como o Spira Mirabilis, onde músicos de grandes orquestras da Europa se reúnem para passar meses juntos, tocando música por prazer, sem maestro?
Sem maestro é maravilhoso, e eu posso dizer isso sem problema algum, pois sou um deles. O músico, como qualquer outro artista, quer se expressar, e, com esse formato, resgata-se certo prazer e liberdade, que, às vezes, no meio de uma instituição, você perde. Assim como temos um certo prazer em jogar cartas, existe um certo prazer em tocar um quarteto de cordas. Existe um entendimento entre músicos. Você fala uma frase, eu respondo. O resgate desse prazer, da maneira espontânea de quando o sujeito não tem preocupação nenhuma com cachê, não tem preocupação se o público vai estar lá ou não, pode ser um pouco utópico. A princípio, acho que não geraria uma engrenagem economicamente viável, mas, talvez, em algum momento vire. Uma espécie de modelo Wiki. Um modelo de autogestão, que entrega produtos de qualidade, e às vezes até melhores, porque envolve outro tipo de entrega, com outra disponibilidade dos artistas, e certamente isso tem de ser olhado com atenção pelas grandes instituições. Acho que é um modelo que, ligeiramente adaptado, pode ser inclusive absorvido pelas grandes instituições em alguns momentos.
É muito difícil ser músico no Brasil, por ser um país emergente?
No Brasil temos bons professores de música, sem sombra de dúvida. Pessoas que são capazes de dar aos alunos uma educação musical de alto nível. Viajar é sempre importante, conviver com as diferenças da vida artística, que são as cores do mundo, com distintas opiniões, formas de viver diferentes. É isso que, no final, constrói o interior do músico. A despeito das questões fundamentalmente técnicas, de fato, ele pode encontrar algumas respostas um pouco melhores trabalhadas fora do país. O músico no Brasil tem muitas oportunidades com a música clássica, mas, como em toda profissão de muita competição, é uma profissão em que o sujeito tem de contar com muita dedicação e sorte. Estar no lugar certo, conviver nos ambientes corretos, produzir. Tem de saber se colocar em certos ambientes. Sem sombra de dúvida, o Brasil já esteve muito pior. Nas década de 1980 e 1990, a gente vivia em um Saara de produção musical. Mas hoje existem alguns benchmarks: a Sala São Paulo, a Filarmônica de Minas, o Theatro Municipal, e todas essas instituições requerem músicos de alto nível, que acabam contaminando todo o ensino da música, todo o consumo da música, e o nível se eleva. Mas o céu é o limite com a arte! Ainda é um choque quando vamos assistir às grandes orquestras mundiais: as Big Five americanas, ou as grandes orquestras da Europa, Berlim, Viena, Amsterdã, São Petersburgo, onde você consegue ver aonde pode chegar uma cultura que se adensa por gerações, construindo um compromisso com a alta cultura. O resultado é muito evidente. A Sala São Paulo e a OSESP são projetos com 15, 16 anos de vida. Estamos ainda na primeira geração de músicos, passando pela primeira renovação. A Filarmônica de São Petersburgo, por exemplo, tem sua origem no século XIX. Outras orquestras como a Gewandhaus, grosso modo, nasceram no século XVI. Enfim, ali existe uma relação longeva do aluno com o professor, que constrói uma sonoridade, um estilo que vai passando de geração para geração, e evolui para um lugar muito nobre. O Brasil chega lá, se a aposta na música clássica seguir sendo coerente e séria. Porque também pode desandar rapidinho. Uma geração é muito pouco. Hoje existe aqui apenas um perfume do que pode ser um bom ambiente de consumo de música clássica. Se na Europa e nos EUA se veem algumas orquestras sendo fechadas… A de Detroit, por exemplo, pediu concordata. Podemos imaginar o quão inóspito o mercado é. Enquanto no Brasil a gente vê um público crescente, na Europa ele diminui! Um público que envelhece. A equação é complexa. Mas o Brasil é um bom lugar para estar!
No filme O Último Quarteto, a personagem de Phillip Seymour Hoffman diz que ele entende a dinâmica do quarteto quando percebe que ser parte do grupo requer converter-se em um, e não ser o the one. Você concorda com isso? Poderia me falar um pouco dessa dinâmica?
Concordo e arrisco dizer que não é apenas uma dinâmica do quarteto de cordas. O maestro italiano Claudio Abbado comenta, num papo de 1997 com Lidia Bramani, sua assistente por muitos anos, sobre a experiência transformadora dos anos berlinenses. Abbado fala do “zusammen musizieren” da Filarmônica local, a cultura de – desculpe o neologismo – “musicar” em conjunto. Gosto de “musicar”, pois é mais que “fazer música”. “Musicar”, acho eu, abrange mais naturalmente também os que ouvem música – e ouvir é criar, de algum modo. A coisa toda é que o sujeito que toca e o sujeito que ouve música – se ouve bem, ou seja, ouve com o corpo inteiro: o intelecto, as vísceras, o coração – de algum modo convertem-se em um. Mas sem perder o limite de si – senão, deixariam de ser ativos na coisa. Acho que isso soa um pouco esotérico, e fico com medo de ser mal interpretado. Mas há alguma coisa de transcendente nessa prática ao mesmo tempo ativa e passiva, uma troca em que se faz e deixa fazer. Uma boa dinâmica de performance é quando todos estão neste jogo de pergunta e resposta pelo sentido dos sons, de entrega e ação pelo significado das coisas. Você não pode apenas atuar com ego; precisa saber suspendê-lo. A troca é ao mesmo tempo sofisticada e simples. Fazer e ouvir música é ser inteiro, um indivíduo com opções e escolhas prementes, mas também é deixar-se levar. Acho que já está dito, mas, nestes termos, fazer e ouvir música é coisa para quem tem, antes de tudo, muita coragem.