#23EducaçãoCulturaLiteratura

Oficina

por Vanessa Agricola

A gente chegou já era noite. Minha mãe parou o carro na frente da casa dele, as luzes da varanda acenderam (estou inventando isso agora, eu não me lembro), meus irmãos saíram correndo do carro. Eu e minha mãe ficamos; ela segurando no volante com o carro desligado, eu chupando dedo.

Ele surgiu de braços abertos. Meus irmãos o abraçaram com um entusiasmo que eu não entendi direito, continuei agarrada na minha mãe (já tínhamos descido do carro). Quando ele veio me dar um oi, chamei ele de tio.

Lá dentro, ele me deu um canudo para beber água (minha mãe perguntou se ele tinha um canudo, e ele tinha). A casa dele era toda desmontada. A televisão ficava no chão, e umas caixas. Acho que tinha acabado de se mudar: “Crianças, vão brincar lá no quarto que a mamãe precisa conversar com o seu pai”.

Meu pai? Eu achava que meu pai era o namorado da minha mãe. Meus irmãos não pareceram surpresos com a notícia. O mais velho colou a orelha atrás da porta, eu e o do meio brincamos de copiar. Não lembro o que escutamos. E não sei depois de quanto tempo minha mãe entrou no quarto chorando e nos colocou um pijama e não sei como se despediu. Eu não me lembro da despedida. Só lembro de ouvir o barulho do carro dela na frente da casa e, mesmo sem entender muita coisa, ter entendido que ela ia embora.

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Françoise Dolto foi uma psicanalista francesa, da década de 30, que dizia que as crianças são capazes de compreender todas as coisas. “Não importa a complexidade do problema”. “Dê satisfação a elas”. “Não as deixe serem surpreendidas”. Meus pais não leram Françoise Dolto.

Por que ela está indo embora? Quando ela volta? Meu pai não veio até o quarto me explicar. Teria sido muito difícil esclarecer para os filhos um divórcio complicado que foi parar na justiça? “Escutem, crianças, sua mãe perdeu a guarda porque eu menti que ela abandonou o lar, mas eu vou cuidar de vocês, tá?”

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A próxima lembrança é na casa da costureira. Meu pai fazendo carinho no meu cabelo enquanto ela me tirava as medidas para o uniforme da escola, uma bata xadrez com um bolso grande na altura da barriga. Também lembro dele me levando para a escola. Ele disse que ia ficar por lá, mas quando a Ádila falou que meu nome era feio, ele já não estava. A professora colou um barquinho escrito meu nome na lousa: “Vanessa é a aluna nova!” E a Ádila: “Vanessa, que nome feio”.

Quando acabava a escola, meu pai ainda estava no trabalho; era a empregada que me buscava. Essa empregada tem uma contribuição musical na minha vida, o Julio Iglesias. Assim que meu pai saía para trabalhar, ela colocava o disco do Julio Iglesias, no último volume, e ligava a enceradeira.

Não sei depois de quanto tempo, eu já me sentia em casa. Já era amiga da Bianca, que voltava da escola com a mãe dela, e ia andando comigo e com a empregada até minha casa, pois erámos vizinhas.

Nos finais de semana, meu pai levava a gente para o Rio, para visitar minha avó e meu avô. Eu sempre vomitava na estrada. Meu irmão Carlinhos vomitava primeiro, depois aquilo me dava enjoo, e meu pai ficava puto porque a gente não avisava que ia vomitar a tempo de descer do carro. Aí chegava no Rio, ele fazia meu irmão lavar os tapetes e o banco. A Paraty azul fedia a vômito.

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A casa da minha avó era tipo um sítio. Tinha a casa grande, que era da minha avó e do meu avô; a casa pequena, que era da tia Liara; o galinheiro; o pomar; a casinha de couro, onde minha tia fabricava bolsas e cintos; e meus primos, Rafa, Ingrid, Mônica, Taíssa e Mariane, tudo da minha idade.

A gente brincava de escolinha na varanda da frente. De Cuca, de pic alto, de bola de gude e, quando meu avô saía, a gente entrava escondido na oficina. Imagina uma garagem cheia de tranqueiras, rádios antigos (meu avô era rádioamador, mas fica para outro texto), televisores, liquidificadores, móveis, tudo quebrado. Tudo que quebrava, meu avô dizia que ia consertar.

Aquilo era uma Disneylândia para crianças. Só que meu avô não era muito chegado em pequenos humanos propensos a quebrar coisas (mesmo as coisas que já estavam quebradas), então a gente era proibido de entrar na oficina. Assim como na sala de estar, que tinha bibelôs em cima da mesa, e onde quer que ele estivesse, precisando de silêncio.

Quando meu pai sofreu o acidente de carro (o carro dele caiu num penhasco, ele ficou numa cadeira de rodas por um ano), a gente foi morar lá no Rio. Minha mãe vinha visitar, meu pai fazia ela esperar no portão. Era minha avó que descia para abrir o portão para a gente sair, era minha avó que perguntava se a gente estava com saudade.

A única lembrança que eu tenho do meu pai neste ano, de verdade, foi que ele levou os meus irmãos no Rock In Rio, e comprou uma camiseta preta do Queen, que foi a única camiseta preta do meu pai.

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Acho que em 86 voltamos para Mambucaba. Meu pai começou a namorar a Luciana (ou eles já namoravam?), aí eles se casaram e ela veio morar com a gente. Não sei em que velocidade. A gente foi para Minas comprar móveis. A gente foi para o Rio comprar pratos e copos. Eles montaram um bar, mas nunca beberam.

A casa bagunçada ficou com cara de casa bonita. A Lú era bonita e enfeitava a casa. Mas só teve um dia que ela me fez uma trança. Quem me arrumava para o balé era eu mesma, ou a Miriam, a empregada nova, que se chamava Eliete mas se fazia chamar de Miriam (por causa da Myriam Rios).

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A Miriam era má. Ela contava que a gente tinha ligado a televisão (meu pai não deixava a gente assistir televisão, mas, às vezes, só às vezes, a gente via o Chaves), contava que eu dei o quiabo para o cachorro, ligava para o meu pai no trabalho, para contar que a gente tinha entrado na oficina.

Sim, a mesma oficina que meu avô tinha na casa dele, meu pai fez na nossa casa. Tudo começou porque a Luciana não gostava de bagunça, aí meu pai foi colocando a bagunça dele na garagem, e aí foi juntando coisa quebrada que ele dizia que ia consertar. Igualzinho ao meu avô; o mesmo monte de coisas quebradas, televisão, rádio, geladeira, e a mesma tirania. Criança não entra.

Então a gente entrava escondido. E a Miriam ligava para ele no trabalho. Aí ele chegava puto: “Quem fez essa bagunça aqui?” Como se aquilo já não fosse bagunçado. E a Miriam: “Foram as crianças, seu Carlos!”

Por causa da Miriam (não por culpa, claro), a gente apanhou muito. O dia que meu irmão chamou a Miriam de morcegão (porque ela era preta e se pendurava na janela para fofocar com a vizinha e, assim, parecia que ficava de ponta cabeça), meu pai bateu nele de cinto. O dia que eu chamei a Miriam de morcega (chamei mesmo), meu pai me deu um tapa na cabeça. Ele me chamou de racista, que aquela não era a educação que ele me dava, e que eu estava de castigo no final de semana: “Mas pai!”, “Fica quieta!”, e saiu para a oficina.

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Todo dia a mesma rotina. Meu pai chegava do trabalho, lanchava (na casa do meu pai não se janta), e ia para a oficina. Saía de lá de madrugada. Eu terminava de lanchar e ia fazer lição. Quando eu não tinha lição da escola, tinha lição de alguma coisa. Piano, pintura, datilografia, inglês, Kumon, tudo que abria de curso em Mambucaba meu pai me inscrevia. Fora os esportes e danças, natação, balé, jazz, sapateado. Nunca levei jeito para nada disso.

Sábado e domingo, quando minha mãe não vinha visitar e a gente enfim descansava, meu pai parou de ir para o Rio por causa da Luciana e trocou a Luciana pela oficina. Meu pai sempre acordou cedo, tipo seis da manhã no máximo, aí ele assistia o Globo Rural (de repente tomou gosto pela televisão) e se metia em sua bancada, soldando peças em placas eletrônicas.

Nunca sentou comigo para estudar. Uma única vez, tão única que eu lembro que foi no dia em que cortei o cabelo igual à Guta do Pantanal, ele abriu meu caderno de matemática (coisa que eu nunca entendi) para me ajudar. Antes de me ensinar qualquer coisa, ficou pasmo com o quanto minha letra era feia (no dia seguinte, me arrumou uma professora de caligrafia), aí esqueceu o assunto matemática, porque lembrou de alguma coisa que precisava fazer na oficina, e eu tive que estudar na casa da Ádila, minha arqui-inimiga, porque eu realmente precisava de ajuda.

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É fácil lembrar. Foram tão raros os momentos em que meu pai parou de consertar as coisas para ficar comigo, as piadas que ele fazia na hora do lanche, as vezes que ele passou manteiga no meu braço quando eu pedia, pai, me passa a manteiga? As gargalhadas que ele dava. Teve um dia que ele escutou um disco do Balão Mágico com a gente na sala e se emocionou com a música “Dia dos Pais”. Eu nunca mais esqueci essa música. Quando ele me levou na praia do Coqueiro e me explicou que eu não podia ir nas piscinas de pedra porque a maré subia muito, que o mar era muito perigoso. E quando ele apareceu na minha formatura (única que ele foi) do curso de Modelo e Manequim, reservou uma mesa na primeira fileira e contratou um moço para tirar foto nossa (são fotos lindas, que eu tenho até hoje).

A viagem a Petrópolis. Meu pai em êxtase porque eu entrei no palácio imperial e me senti em casa. Foi muito estranho, eu conhecia aquilo tudo inteiro. E meu pai foi ficando muito, mas muito empolgado. Filha, você já morou nessa casa?! (Meu pai é espírita, aquilo foi outra prova para ele de que a vida continua, e mais, de que a filha dele tinha sido uma Orleans e Bragança).

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Cinco anos se passaram, e eu voltei à guarda da minha mãe em São Paulo. Meu padrasto, a quem eu sempre chamei de Gui, e para as outras pessoas de pai, porque ele foi o pai que meu pai não foi, faleceu agora, vinte e sete anos depois.

No dia em que o Gui morreu, meu pai foi o primeiro a ligar: “Oi, filha”.
Quando a gente fica triste de verdade (eu, pelo menos), é tão difícil chorar. Naquele dia, eu só chorei para o meu pai. Foi no ombro do meu pai que eu consegui desmoronar a tristeza da morte do pai que ele não foi. E, depois daquele dia, como se meu pai tivesse entendido o quanto eu precisava dele agora que eu não tinha mais o Gui, ele passou a me ligar sempre.

Até hoje, quando toca o telefone e eu vejo que é ele, eu estranho. Tantas vezes ele dizia que ia ligar, que ia vir, que ia ver se dava, nunca deu. E então ele começou a me ligar toda semana. “Oi, filha.” “Oi, filha.” “Oi, filha.”

Metade do telefonema ele fala de doença (meu pai é um baita de um hipocondríaco), a outra metade ele diz que eu sou linda.

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Ontem, no Skype, pela primeira vez na vida, meu pai disse que estava doente, e eu fiquei preocupada. O Skype pega mal aqui em Nova York, a câmera demorou para abrir e, quando abriu, ele me apareceu com o pescoço caído, a cabeça toda torta: “Oi, filhota!”

O primeiro médico, de Mambucaba, disse que era torcicolo. “Aí, filha, como isso não passou, eu fui num médico lá no Rio, e ele acha que é câncer mesmo.”

Câncer, pai? “Mas não faz essa carinha de preocupada não, filhota. O Dr. Hans lá do centro espírita disse que dá para operar. Eu já fiz uma operação espírita, lembra? Deu para sentir tudinho, filhota, o corte, a raspagem do osso, precisa ver que bacana.”

“Pai, vai num médico de verdade, pelo amor de deus.” “Mas eu fui! Eu não te falei que eu fui nesse médico lá no Rio? Esse cara é o chefe da oncologia do Hospital do Fundão, o cara é fera!”

Segunda-feira sai o resultado da biopsia.