Portfólio: Os desenhos urbanos de Bruna Canepa
Logo na capa desta edição da revista Amarello se vê como Bruna Canepa reage às pinturas que cobrem fachadas cegas nos arredores de Gênova. Em 2015, em viagem à Itália, os murais trompe-l’oeil da Ligúria lhe causaram forte impacto; nas suas próprias palavras: “essas pinturas não condizem com o interior do edifício. Atrás delas, há algo diferente do que anunciam”.
Assim, provocada, Bruna responde com uma série de desenhos, sempre aos pares, como dípticos que seguem uma mesma estrutura sucessiva: [1] vista frontal, aquela que coloca o observador no ponto preciso para que se produza a ilusão, e [2] projeção axonométrica, aquela em que o truque se desvela. Na primeira, é puro efeito. Na segunda, está desfeito. Por isso, ver a segunda equivale a conhecer o plano. Vendo-a, é possível inferir como se quer iludir o observador da cena projetada. É justamente esse segundo tipo que estampa a capa da nossa revista. Ou seja, ela não nos mostra o efeito, mas a chave. Uma chave é sempre um belo convite. Neste caso, a artista nos apresenta os elementos que devem figurar na cena para que a gente possa, por conta própria, imaginá-la. Como se a beleza não estivesse na obra, mas no modo como cada um a lê. Ela nos toma como se fôssemos todos artistas.
Quando atendemos ao convite e passamos ao corpo da publicação, às obras reproduzidas dentro da revista, como quem passa de Gênova a São Paulo, confirma-se ainda com maior clareza que a fonte de onde Bruna extrai os elementos constitutivos dos seus desenhos, as imagens que ela põe em movimento para a construção do seu trabalho, é outra vez a cidade. Sempre. Ali, o que sustenta [como edifícios], o que navega [como barcos] ou o que voa [como foguetes] é sempre uma elaboração sensível de sua vivência urbana.
As duas obras da casa fluxo [trabalho colaborativo / Estúdio Miniatura] também funcionam como um par ou uma dualidade. Não por acaso, aqui os dois elementos do díptico estão reproduzidos. [1] A casa, com suas paredes negras, destaca o efeito de uma luz acesa ali dentro, acentua a sensação de abrigo, lugar adequado ao recolhimento. Vista assim, por fora, ela, a casa, paira serenamente. [2] Então, quando na sequência se atravessa suas paredes externas, a ideia de aconchego se desfaz, e nós a percebemos como parte de um sistema que lhe escapa e a coloniza. A casinha sem paredes se mostra completamente atravessada por feixes de conexões a que a artista chama de fluxo. Inversões presentes que, a seu modo, Bruna pressente e registra. Assim, justamente dentro da casa, onde estaria o espaço da intimidade, é onde o sujeito, como a casa, se pulveriza em muitas direções a partir daquele nó de fluxos.
Uma obra das obras que não tem seu par tem duas imensas janelas. É a única ilustração de um ambiente interno. A altura do cômodo e as dimensões das aberturas são agigantadas. O sujeito ali olha através da janela, cujo peitoril está à altura dos seus olhos, e, portanto, seu ângulo de visão só abrange o quadrante superior. Ele olha um céu noturno salpicado de pontos brancos, como estrelas, e dois círculos, como duas órbitas concêntricas nitidamente desenhadas. A imagem tão sintética nos instiga de alguns modos: [1] as órbitas fazem ver que ali o céu é plano e está em movimento [2] enquanto a sala, representada em perspectiva, tem as duas paredes laterais escapando para mais de um ponto de fuga, todos verticalmente alinhados no segmento definido entre a cabeça do sujeito e a abertura mínima, como uma inesperada seteira, na parede do fundo acima dele. O piso e o teto não seriam planos paralelos, e as grandes janelas, de fato, não seriam retângulos. Perspectiva fingida ou, de novo, o trompe-l’oeil. Outra vez o contraste, ou a mediação, entre o que é verdadeiro e o que é simulado. Justamente o alinhamento vertical dos pontos de fuga coloca em destaque uma abertura ínfima e fora do domínio visual daquele sujeito; a seteira quase perdida na parede que é coplanar ao céu poderia eventualmente enquadrar um foguete. Seria uma casa ou uma espaçonave?
A seguir, um pedaço de cidade se prepara para zarpar. Primeiro, ele se descola da malha urbana pela escala. Parece ser justamente quando mais se verticaliza e se adensa que ele se põe em condição de navegar [cidade à deriva]. Em certa medida, todo navio é exatamente assim, uma parcela urbana, como território itinerante de um país, que se lança ao mar. Do mesmo modo acontece no trabalho de Bruna Canepa, pois aqui também a carga que aquela embarcação carrega é a matéria-prima com a qual ela constrói sua obra. Por isso, a obra que ilustra a cidade à deriva em seção transversal [drifting city, trabalho colaborativo / Estúdio Miniatura], e planta em malha ortogonal representada logo acima, é tão significativa. Nesta carga cultural, estritamente urbana, incluem-se a montanha e as árvores; a infraestrutura, as embarcações e os aviões; os edifícios e as esculturas; enfim, o todo existente no mundo já descrito pelo homem [construído ou não por ele] faz parte dessa bagagem cultural sobre a qual essas obras tecem a sua reflexão.
É porque está munida deste acervo, ou carga cultural, que Bruna propõe com clareza didática as quatro operações sobre um cubo [denominados platônico, à primeira vista, impossível e ideal]. Ainda aqui, quatro dípticos, como se [a] o primeiro descrevesse o propósito e [b] o segundo desvendasse a estratégia. Em platônico, [a] ligar um ponto na base de uma face ao topo da face oposta; [b] uma fresta e uma escada. Em à primeira vista, [a] ligar um lado ao lado oposto em mesmo nível, próximo à base; [b] atravessar por um túnel plano. Em impossível, [a] ligar dois pontos altos em faces opostas; [b] uma combinação dos dois primeiros, mas em vez de escada, um fosso vertical, elevador, e o plano vertical subtraído para a conexão horizontal entre os dois. O ideal lança mão dos mesmos elementos, que são a escada e o fosso, a fresta e o túnel, como estratégias de conectar como um caminho a percorrer ou apenas visualmente. Mais que a soma, aqui também se sugerem ocupações ou volumes cavados dentro dos volumes. São operações arquitetônicas que evidenciam a proximidade da artista com esta abordagem.
E, seguindo ainda por esse mesmo caminho, ela vai mais longe. Em proposal for a gym [trabalho colaborativo / Estúdio Miniatura], a sugestão de arquitetura é tão nítida que ganha inclusive programa. A gente imagina, de fato, aquela parede espessa como um edifício estreito para abrigar a atividade solitária em que o sujeito, preso ao próprio corpo, esgota-se ativamente na mais extrema solidão.
É sobre a beleza dessas obras, extraídas da experiência de cidades a partir de uma sensibilidade notável e uma racionalidade e realizadas com extremo apuro técnico em desenhos rigorosamente executados que Bruna Canepa funda sua plataforma artística. Então, sobre a plataforma, o foguete. Aquelas mesmas duas cores, azul e vermelho, usadas sempre com tanta parcimônia sobre o branco do papel e o preto dos traços, aqui neste artefato elas parecem explodir. É um foguete de carga, que pode transportar a qualquer ponto do espaço toda riqueza cultural que constitui o acervo do nosso imaginário urbano.
É assim, embarcada em seu próprio trabalho e no comando dessa espaçonave, que a artista Bruna Canepa decola.