Tereza Artigas e Rubens Amatto conversam com a AMARELLO sobre o projeto que vêm maturando há mais de três anos: levar a Casa de Francisca para um palacete de 1910, na rua Quintino Bocaiúva, no centro de São Paulo.
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TEREZA ARTIGAS – (…) Eu recebi o prédio há doze anos, quando meu pai faleceu. Naquela época, havia um preocupação muito grande de todos com a possibilidade do prédio cair, pois estava em péssimas condições. Então, todo esse processo foi muito complicado. Demorou anos. Tinha que destrinchar as questões familiares, todas as possibilidades, mas aos poucos a gente foi conseguindo encontrar caminhos. Até chegar o dia em que me falaram que você tinha batido lá. Eu falei: “O quê?! Da Casa de Francisca?” – eu já conhecia – “Que barato!”.
Era uma possibilidade de trazer, de verdade, uma vida para aquele prédio. Porque não adianta você arrumar o espaço por fora e não ter gente que o ocupe. Fica apenas uma casa bonita e sem vida… A possibilidade de trazer uma revitalização não só externa, mas interna, com música, arte, é um sonho, ainda, para mim. Acho que o dia em que isso acontecer vai ser igual à Virada Cultural, que a gente chorava como duas crianças, né?
RUBENS AMATTO – Verdade! A gente teve uma pequena experiência alguns meses atrás, com os shows que a gente fez abrindo a Virada. Uns shows com os artistas na varanda e o público ainda no calçadão histórico, que era uma tradição do prédio. Corrija se eu estiver errado, mas sempre, desde o início, a música transitou ali. Não só abrigando a primeira loja de instrumentos de São Paulo, que existe até hoje mas com outro nome, mas também como sede da rádio Record, no auge do rádio, nos anos 1940, 1950. (…) com as pessoas passando pelas ruas, assistindo a essas performances. Até já vi algumas fotos da época da Guerra, o Repórter Esso anunciando as notícias da Guerra para o público ali, em primeira mão. É tudo muito recente e impressionante.
TEREZA ARTIGAS – Tem uma coisa que eu acho que nunca te perguntei. Quando você chegou a primeira vez lá…?
RUBENS AMATTO – Era um final de semana, eu estava com um amigo, então muito chateado, porque tinha brigado com a mulher. Aí ele falou: “Preciso conversar, vamos dar uma volta”, e aí a gente foi andar pelo Centro. O Centro é interessante porque, pelo fato de não poder entrar carro, é um dos poucos lugares de São Paulo em que as pessoas podem andar…. Mesmo com todo esse mito que existe em torno do Centro, principalmente à noite, pela falta de segurança, se fala muito de revitalizá-lo, mas o Centro é extremamente vivo, e a questão de não ter carro ali favorece demais a convivência das pessoas, que podem não só se olhar, como olhar um pouco mais a cidade. Então estávamos andando por lá, e conversamos sobre a vida, sobre nossas angústias, e numa dessas a gente dá de cara com o palacete. Eu falei: “Me parece que está desocupado, eu preciso saber o que tem aqui”. Mas o que me deu o clique foi quando vi uma plaquinha do Adoniran Barbosa, que existe até hoje e que coincidentemente é de um projeto de uns amigos que mapearam os principais pontos da cidade que o Adoniran frequentava. Já tinha visto essa plaquinha em outros lugares, aí eu fui ler e vi que era a sede da rádio, e descobri que aquela esquina chegou a ser conhecida como Esquina Musical de São Paulo. Fiquei muito encantado com aquilo, com a imagem do palacete na cabeça, com a plaquinha do Adoniran me perseguindo…
Mandei um e-mail falando: “Olha, tenho um projeto, eu não sei se vocês conhecem, é a menor casa de shows de São Paulo, é um projeto assim assado, e queria muito a oportunidade de conversar para, quem sabe, fazer alguma coisa aí dentro”. Eu mandei e juro que não esperava resposta. Quando recebi a resposta de que queriam conversar e tivemos a primeira conversa, quando soube que você era frequentadora da casa desde o início, quando soube da sua ligação com as artes, da sua relação com a cidade e do desejo de restaurar esse patrimônio histórico, foram coisas muito fortes para mim. Eu me lembro de uma frase sua que até hoje me norteia: “Olha, o meu desejo é devolver o palacete para a cidade”. E eu jamais imaginaria que alguém que pudesse estar por trás da administração de um imóvel desses tivesse a sensibilidade e o desejo de olhar para a cidade, porque geralmente a gente tem uma visão mais estereotipada de que quem está por trás de um imóvel desses está pensando no próprio umbigo e dane-se.
TEREZA ARTIGAS – Não temos muitos espaços públicos na cidade, salvo os parques. Faltam espaços na cidade, e o Centro – meu pai sempre me falava isso –, “o Centro vai voltar” … Só depende do tempo.
Quando as coisas foram se resolvendo, eu fui ganhando fôlego para ter coragem e dar mais um passo. E a sua presença e o projeto fortaleceram minha vontade de continuar, porque o que adianta ter o espaço e não ter quem circule, quem visite, quem viva aquilo? Eu não gosto de casa vazia, eu gosto de casa cheia, as pessoas têm que estar lá, têm que ver, é bonito para ver. Todos os lugares bonitos do mundo as pessoas vão lá e veem. Tudo bem, existe a parte comercial, que tem que se autossustentar, não sou também uma cabeça maluca, mas se a gente puder juntar as duas coisas… No dia do show da Virada Cultural, tinha uns mendigos ali que dançavam, dançavam, dançavam felizes… Claro que vai ter um grupo de pessoas que vai entrar, mas a gente também vai fazer coisas para fora, para a rua. Aí vai ser para todo mundo. Porque a gente não está falando só do palacete e da Casa de Francisca, a gente está falando da ideia de que esse Centro consiga irradiar para outros lugares da cidade.
RUBENS AMATTO – A origem do Centro, que é a origem da cidade, tem uma vocação de encontros, uma vocação das mais democráticas, onde se encontra a maior diversidade de públicos e de pessoas, e a riqueza cultural do país é essa. Tanto o Centro quanto as periferias vêm nos ensinando que a cidade só vai sobreviver havendo essas convivências, senão cai no que a gente está começando cada vez mais a perceber, a intolerância, a segregação. Poxa, é um momento importante. A gente está vivendo um momento político tenso, e essa tensão manifesta exatamente como a sociedade está se relacionando. Muita gente nem conhece o Centro e, quando conhece, vê quão vivo é. À noite, sim, à noite é morto, fecha tudo, e acho que existe um potencial absurdo ali. Aos poucos. Temos que ir aos poucos. Mas iniciativas como a sua, de resgatar um patrimônio histórico, de recuperar a memória não só desse imóvel, mas uma memória que está naquele entorno, uma memória da cidade… A gente tem a tendência de soterrar nossa memória.
TEREZA ARTIGAS – Eu acho que a gente carece de autenticidade. A vida carece de autenticidade. Vivemos plastificados. As conversas são plastificadas. Estamos precisando de relações mais íntimas para ter uma proximidade, para despertar o humano. Despertar o alimento para a alma. As pessoas vão para a academia, fortalecem o corpo e fazem milhões de coisas para a cabeça. E a alma, fica onde? A alma fica tristinha e fala “e agora?” A música é algo que revitaliza e alimenta.
RUBENS AMATTO – Nossa, a gente só está sobrevivendo esses anos todos por amor e por alimento a essa música. Vamos torcer para que as pessoas também saiam da zona de conforto e frequentem o palacete.