#22DuploCulturaLiteratura

Os outros

por Ananda Rubinstein

Não saio da cama. Tenho me alimentado basicamente de shakes proteicos, cápsulas vitamínicas e sorvete de caramelo. Assisto a todos os Truffauts e Godards me sentindo a última das mortais – o que não é tão absurdo, já que é cada vez maior o número de pessoas rumando para a imortalidade. As Kardashians, dizem, já chegaram lá.

Conheci Leo há alguns anos. Ele me seduziu com sua afetividade explícita, sua preocupação com tudo ao seu redor e comigo. Aprendi a ser ligeiramente mais otimista com ele, a aceitar a impermanência, a achar graça no óbvio. Subíamos montanhas e acampávamos em planaltos vastos. Ele lia histórias para mim, escrevia poesia ruim, cantava na chuva. Fomos felizes por dezesseis meses.

Leo foi uma paixão sinuosa que nunca passou. Eu ainda acreditava na possibilidade de reconquistá-lo quando fui morar no prédio em que ele vivia, no Centro. O apartamento dele era o 161; o meu, o 171. Abríamos um a porta do outro com as nossas digitais. Éramos próximos assim. Sua lealdade, sua natureza generosa, o penne à primavera de madrugada, a melhor vista de São Paulo, os noturnos de Chopin, sua simples existência tornava minha vida suportável. Seu humor absurdo e afiado não poupava anões nem ninguém. Leo também era mau. Ele terminou comigo porque, explicou, era cindido e precisava reunir as duas partes. Em vez disso, tirou os dois sapatos e pulou do décimo-sexto andar.

Há tempos me sinto muito sozinha na cidade e, não fosse por Leo, já teria me mudado – só não sei para onde. Agora que ele se desintegrou no ar, fico pensando se tudo não seria exatamente igual em Florianópolis ou Indianápolis. A paisagem muda ligeiramente; os problemas, não. E o problema é que eu achava que só com Leo as coisas faziam sentido e, sem ele, entrei num limbo existencial.

Sou tomada de ódio por sua mãe, uma femme fatale que abusou dos tratamentos embelezadores com células-tronco. A relação mãe e filho era profunda, tensa, um verdadeiro clichê freudiano. “Dorme com a mamãe”, Leo me contava que ela pedia. Ele, um rapazote de dezessete anos. Sônia (seu nome) passou para coletar objetos pessoais de Leo e levou até o frasco que continha as últimas gotas do perfume dele, tão difícil de encontrar.

No meio de uma tarde especialmente árida, migro para o sofá, em busca de novos ares. Meu desejo é cada vez mais frágil; não chega nem a se formar. Automática, checo meus e-mails e… o ar me falta. No inbox, uma mensagem de Leo Stephanopoulos. Afasto-me do computador, num pulo. Um trote, claramente. Vou até o banheiro e me olho no espelho; a pele emaciada, cor de massa corrida. Meto a mão na minha própria cara, com força: aí estou, viva.

Segue cópia da missiva:

——-
20 de janeiro de 2048

Lara,
Espero que o choque já tenha passado. Provável que eu tenha chegado aonde quer que eu tenha ido enquanto vc lê este e-mail. Fique bem, OK? E, sim, eu te amei (mas sempre achei q vc devia se preocupar mais em amar do que em ser amada…). Fiz um backup da minha memória e gostaria que vc guardasse isso. Dá pra acessar imagens, diálogos, filmes. Não tem uso, nem quero que vc perca seu tempo – é muito material: minha vida inteira, desde a primeira respiração até o fim que eu escolhi. Só queria que vc guardasse, te peço. Está tudo num chip que deixei na primeira gaveta da escrivaninha, com instruções. Eu andava muito infeliz, tenta entender. E não, não teve nada a ver com vc. Uma coisa aprendi: viver é duro, mas morrer é viscoso. Se cuida.

L.
————

Abro a grande tela holográfica e faço um select das imagens apresentadas pelo programa. Escolho os melhores sorrisos, movimentos, olhares e frases de Leo. Em seguida, faço o upload dos dados para a pasta “cérebro” do avatar. Em menos de uma hora, tudo está pronto.

O avatar toma forma na tela. Alguns touchs, e o holograma aparece. É Leo. É inacreditável! Olha o sorriso torto, a risada sardônica, os olhos que prometem o que jamais poderá ser cumprido, os tiques. O holograma Leo é detentor dos segredos dele e dos meus, da nossa história, mas nada disso é meu.

Vejo-me no espelho do banheiro e minha imagem parece turva. Jogo uma água no rosto. Estou esgotada.

Leo era um neofreak que sonhava com bioreservas orgânicas, onde vivem novas versões das velhas comunidades hippies que consomem o que plantam, curtem cupcakes de haxixe e acreditam no amor livre. O planeta, ele dizia, esta grande teia biológica, vai virar um computador ordinário.

Nerds como Leo têm acesso ao complexo mundo da imersão total na realidade virtual. Ele foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da engenhoca que traduz sinais eletrônicos em ondas que interceptam as informações sensórias levadas ao cérebro.

Um dia, ele dizia, logo mais, vão transportar mentes conscientes pra corpos humanos, androides, hologramas; você ainda vai conhecer – e quem sabe se apaixonar – por um robô consciente. A profecia não tardou a se concretizar. Um tempo depois, conheci certo bot de chapéu pork pie num bar da cidade.
A solidão é diluída com o holograma. Deitada no sofá, converso com um espectro brilhante que me dá respostas preexistentes.

Leo não existe mais. Tudo o que restou é um fac-símile plácido da sua mente. Não há movimento, não há consciência.

Há uma série de pastas de memórias: família, amores, infância… o outro. Entrei nessa última, curiosa. São arquivos e arquivos de fantasias e desejos perversos: métodos de tortura, orgias sangrentas, narrativas complexas de assassinatos de parentes próximos, listas e listas de minuciosas traições, de crueldade deliberada, de horror. Eu entrava como personagem em várias dessas histórias. Numa delas, o desejo de que um tubarão me devorasse em alto mar.

Levanto e vou lavar o rosto, lívida. Olho para o espelho e não me vejo. Sou eu e uma outra. Jogo mais água na cara e esfrego os olhos. Passo vários instantes encarando a desconhecida.

Entro no apartamento que era de Leo e busco algum resquício do Comme des Garçons odeur de borracha queimada, perfume tão estranhamente afetivo quanto Leo era. Não detecto cheiro nenhum. É como se ninguém nunca tivesse vivido ali.

Sinto-me uma invasora em seu apartamento desabitado. Procuro algo que não sei o que é.

Acesso as memórias mais uma vez. O holograma se acende. Vejo dois reflexos no espelho: o holograma Leo e uma mulher que não reconheço.
Durmo mal, tensa, como se dividisse a cama com um estranho. Ouço passos leves, som de cartas sendo embaralhadas. Levanto-me; a lua é colossal e seu brilho cai sobre o rosto da mulher que caminha em direção à janela e abre a cortina. Ela é igual a mim! E ela se joga. Acordo com meu grito.

De manhã, escovo os dentes, com medo do espelho. Levanto o olhar, rápida, para confundir a imagem, mas ela está lá, idêntica a mim. E não sou eu. Vejo duas metades de mim, que sou outra coisa, um terceiro ser, cindido. Essas metades se procuram e se perseguem.

Não desejo mais nada e sei que preciso de ajuda.

Espelho, espelho meu, pergunto, existe outro eu?