#27PerspectivasEditorial

Editor convidado: Alexandre Villares

por Alexandre Villares

Uma revolução tecnológica e cultural está em curso nas últimas três ou quatro décadas. Você já ouviu falar em Software Livre, Open Source e termos como Copyleft? Quem transita pela chamada economia criativa talvez tenha ouvido falar de Creative Commons, uma ONG que produziu um conjunto de licenças inspiradas no movimento do Software Livre, que utilizam a infraestrutura do direito autoral tradicional visando fomentar a difusão cultural e o compartilhamento do conhecimento.

Todo mundo provavelmente já usou material publicado sob licenças Creative Commons e possivelmente não percebeu. A Wikipédia, o acervo digitalizado da revista Acrópole, ou o material de aula dos cursos do MIT tornado público numa iniciativa conhecida como OpenCourseWare são alguns exemplos.

Muitas pessoas já ouviram falar em Linux, ou no Linus Torvalds. Mas e Richard Stallman, do projeto GNU e da licença GNU Public Licence — GPL, sob a qual o kernel (núcleo) Linux é distribuído? A esmagadora maioria dos computadores que fazem a infraestrutura computacional das grandes empresas e da Internet (nuvem é um nome bobo para o computador dos outros) roda GNU/Linux.

Licenças de software são um assunto técnico pesado, e não sou advogado, mas aguentem firmes! Vamos começar com a definição de Software Livre, as quatro liberdades fundamentais, contando a partir da liberdade 0 (zero), como os programadores gostam.

A liberdade de executar o programa, para qualquer propósito (liberdade 0);
A liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo às suas necessidades (liberdade 1) —
para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito;
A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar ao próximo (liberdade 2);
A liberdade de distribuir cópias de suas versões modificadas a outros (liberdade 3) —
desta forma, você pode dar a toda comunidade a chance de se beneficiar de suas mudanças. Para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito.
(definição de Software Livre da Free Software Foundation)

Tanto esta definição como a definição de Código Aberto, criada por outra vertente de pensamento chamada Open Source Initiative , citam o código-fonte. O que vem a ser isso? O código-fonte é a versão legível por humanos de um programa, que pode ser convertida, compilada ou interpretada, para a execução pelo computador.

As licenças de software livre e aberto, não proprietário, são permissões para execução, modificação e livre compartilhamento de programas. Se dividem em duas principais categorias, com copyleft ou “permissivas”¹ , mas sempre pressupõem o acesso ao código-fonte.

Programas são instruções escritas em uma linguagem de programação para que um computador execute. Todos partem de instruções simples que podem ser combinadas para implementar ações mais complexas e algoritmos.

Um algoritmo nada mais é do que uma lista passo a passo de instruções que, caso executadas, resolvem algum problema em um número finito de passos. Na escola, aprendemos algoritmos para somar, subtrair, multiplicar e dividir números com lápis e papel.

É recorrente para mim um sentimento que remete à famosa palestra As duas culturas² do cientista e escritor inglês C.P. Snow (1905–1980), exasperado com o cisma entre as ciências e as humanidades. Uma nova divisão entre programadores e não programadores seria mais um indício da perda de uma cultura comum?

Rushkoff, no seu provocativo Program or be programmed (programe ou seja programado), promove a ideia de que uma nova “alfabetização em programação” é essencial. Muitos defendem o ensino de programação cedo nas escolas. O currículo nacional britânico de 2014 introduz ciência da computação.

Artistas, designers e arquitetos que se tornaram programadores não são tão incomuns. Alguns se tornam programadores no sentido tradicional, trabalham com programação full-time, outros apenas acrescentaram a programação às suas habilidades e a incorporaram ao seu métier. Yorik van Havre, por exemplo, é um arquiteto-programador que mora em São Paulo e esteve recentemente envolvido no projeto do WikiLab, a ser construído com técnicas de fabricação digital num terreno cedido pela UFABC, e é, ao mesmo tempo, um dos principais desenvolvedores do FreeCAD, software livre para projeto (incluindo arquitetura).

Poderia citar aqui uma dúzia de arquitetos amigos e conhecidos que programam. Talvez minha amostra seja um pouco enviesada, uma vez que promovo, com a artista-programadora responsável pela capa desta edição, um encontro mensal sobre arte e programação intitulado Noite de Processing, cujo nome é homenagem a uma ferramenta de programação, desenvolvida em código aberto/livre.

Assim como outros associados e frequentadores do Garoa Hacker Clube, o local que abriga nossos encontros, temos interesse em “fuçar” e transitar pelos mais diversos assuntos tecnológicos, de fabricação de cerveja a criptografia de chave pública³.

Alguns desses assuntos são mais sérios que outros: criptografia se tornou rapidamente uma das ferramentas fundamentais para preservar a privacidade e segurança das pessoas, ao meu ver essenciais para o funcionamento de uma sociedade aberta (em oposição a um regime totalitário).

A privacidade está sendo erodida por governos e grandes mercadores de dados pessoais (como Google, Facebook ou os bureaus de análise de crédito). Uma complexa questão que se interliga com discussões sobre segurança da informação. Ferramentas baseadas em uma infraestrutura criptográfica permitem formas distribuídas de controle e colaboração. É um assunto vasto.

Ao mesmo tempo, formas de autoria e de acesso à propriedade intelectual estão sendo questionadas na arte, na indústria, na sociedade civil organizada, na pesquisa científica. Monica Rizzolli comenta que “um novo paradigma de arte está sendo gerado, nos fóruns, comunidades e plataformas on-line”.

Na campo da arquitetura, colaboração é possivelmente o aspecto mais central da Modelagem da Informação da Construção (BIM, na sigla em inglês), concordaria comigo, acredito, o arquiteto, especialista em BIM, João Gaspar4.

Arrisco afirmar que os artistas-programadores, designers, jornalistas, neurocientistas e linguistas que também sabem programar (assim como muitas outras pessoas que programam mas não são programadoras profissionais, no sentido tradicional) estão em uma posição privilegiada para integrar formas contemporâneas de conhecimento.

Estender, ampliar e modificar ferramentas digitais existentes (inclusive tirando proveito dos glitches); valer-se de grandes massas de dados, de análises estatísticas e métodos de inteligência artificial; lidar com complexidade; criar modelos e simulações5. Tudo isso é possível num contexto de colaboração, usando bibliotecas de código livremente compartilhadas. Colaboração é a perspectiva que temos.


1 – A GPL que mencionei é provavelmente a mais importante licença com copyleft, a obrigação de distribuir qualquer modificação, ou software que incorpore o código, com permissões iguais. É a licença sob a qual é distribuído o sistema operacional GNU/Linux, por exemplo. As licenças permissivas “estilo BSD”, MIT ou Apache (um dos mais populares softwares para servidores web), não têm essa obrigação, o que permite inclusive que versões modificadas sejam distribuídas como software proprietário. É o que a Apple faz ao empacotar com modificações e acréscimos o sistema operacional Darwin, o transformando no MacOS e no iOS.

2 – “A good many times I have been present at gatherings of people who, by the standards of the traditional culture, are thought highly educated and who have with considerable gusto been expressing their incredulity at the illiteracy of scientists. Once or twice I have been provoked and have asked the company how many of them could describe the Second Law of Thermodynamics. The response was cold: it was also negative. Yet I was asking something which is the scientific equivalent of: Have you read a work of Shakespeare’s?

I now believe that if I had asked an even simpler question — such as, What do you mean by mass, or acceleration, which is the scientific equivalent of saying, Can you read? — not more than one in ten of the highly educated would have felt that I was speaking the same language. So the great edifice of modern physics goes up, and the majority of the cleverest people in the western world have about as much insight into it as their neolithic ancestors would have had.

Snow, C. P. The Two Cultures 14–15 (Cambridge Univ. Press, 1998)

3 – Criptografia de chave pública, simplificadamente, é a tecnologia relativamente recente, do séc. XX, que permite criar canais de comunicação seguros entre os participantes, sem um prévio contato seguro entre eles (como o seu navegador e o site do seu banco). Permite também as chamadas assinaturas digitais (como as usadas em uma nota fiscal eletrônica, por exemplo).

4 – GASPAR, João. BIM – IFC sem mistério.

5 – DOWNEY, Allen. Think Complexity: Complexity Science and Computational Modeling.