A regra deste jogo é adivinhar quais regras existem e, então, colocá-las em ordem cronológica, segundo a legislação brasileira. Por exemplo: proibição do casamento infantil, casamento sem exigência de virgindade, casamento com a pessoa escolhida, proibição do parto com algemas, extinção da pena por estupro caso a vítima se case com o estuprador, pensão alimentícia.
Não sei se ajuda ou atrapalha, mas pingo algumas datas para você pensar: 1603, 2002, 2005, 2013, 2016. Notou que faltou uma? Sinal de que prestou atenção. Se percebeu que um dos exemplos ainda não é lei, ponto para você. Mas se este é um dado que te surpreende, ponto para o jogo. A ideia é essa: provocar e esclarecer o pensamento político.
O nome do jogo é Molho Especial, parte do cardápio da Fast Food da Política, uma organização criada e gerida por mulheres que, sobre as receitas clássicas da teoria dos jogos, quer ampliar e melhorar a noção política da sociedade.
Em 2015, a designer Júlia Carvalho embarcou no Ônibus Hacker, trupe que roda o Brasil instigando curiosidade e participação política. A primeira escala foi numa cidade de quatro mil habitantes. Depois, saltaram para uma de quatrocentos mil. Até que chegaram a Brasília.
Num alumbramento de João de Santo Cristo, Júlia ficou bestificada. Mas não com as luzes de Natal. Era agosto de 2015, auge das manifestações pró e contra o impeachment de Dilma Rousseff, com direito a muro separando os grupos.
O ônibus estacionou e os ativistas abriram os trabalhos. Brasília, capital federal do Brasil, em um aspecto não era diferente das cidades de quatro ou quatrocentos mil habitantes. Em plena Praça dos Três Poderes, os manifestantes revelavam desconhecimento sobre o que se passava nos salões e gabinetes dos prédios ao redor. “Se a Dilma cair o Aécio assume?”
Na lógica de uma designer, se há culpa na incompreensão do que está exposto, ela é daquele que comunica. O princípio da profissão que Júlia escolheu é traduzir qualquer mensagem, para qualquer pessoa, em qualquer lugar.
Olhando para o Congresso Nacional, ela viu nas cúpulas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal as metades de um pão de hambúrguer, que recheou com as torres de gabinetes e, assim, decidiu que a compreensão básica do processo político, fundamental para o debate político, seria universalizada e digerida na velocidade e na dimensão alcançadas pela rede mundial de sanduíches. Nascia a Fast Food da Política.
O cardápio é vasto e lúdico. Três Poderes é um quebra-cabeça que se completa quando Legislativo, Executivo e Judiciário se encaixam com seus respectivos órgãos e atribuições. Três Esferas é um jogo de basquete onde as bolas são os políticos e os cestos são as esferas municipal, estadual e federal. Ganha quem acertar quem está em qual e quais são suas competências. Em Monte Seu Governo, o desafio é colocar as pessoas mais indicadas nos postos correspondentes a fim de alcançar o objetivo escolhido, considerando o perfil político-ideológico de cada um.
Na forma, meu predileto é o Queda do Patriarcado. Inspirado no Jenga, aquele jogo da torre que não pode desabar, a proposta é construir a transformação desejada com atenção às camadas culturais estabelecidas ao longo da história. Claro que você pode ir direto à peça que te incomoda num tapa, demolindo a torre. Mas a história prova que quem fez esta opção acabou perdendo o jogo.
Se abri seu apetite, aceite uma sugestão. Como esta crônica, comece pelo Molho Especial. Indo direto ao Queda do Patriarcado, você corre o risco de achar que a torre não é assim tão feia. O atavismo faz a gente olhar com naturalidade para coisas horríveis. E o Molho Especial, com a sutileza dos temperos simples, é capaz de mudar sua nota. Quer ver?
Até 2002, o casamento podia ser anulado pelo marido caso a não virgindade pré-nupcial fosse comprovada. Só em 2005 foi revogada a possibilidade de extinção da pena de estupro caso a vítima se casasse com o estuprador. O direito de casar com a pessoa escolhida veio em 2013, quando o Judiciário equiparou a união homossexual à heterossexual. Ainda no ano passado, era legal manter algemada uma mulher durante o trabalho de parto.
Em 2017, não há lei que impeça o casamento infantil no Brasil, ao contrário de outros 24 países na América Latina. Segundo a ONU, somos a quarta Nação em quantidade de casamentos precoces, prática que atinge 36% da população feminina brasileira e é responsável por 30% da evasão escolar no mundo. Por aqui, o limite de idade é definido pelo organismo da mulher, não pela lei. Isto é, aceitamos que, se uma menina pode engravidar, também pode se casar.
Entre os homens, a pensão alimentícia chega a ser mais aceita do que entre as mulheres. Não é raro encontrar uma mulher que se negue a processar o pai que descumpre as obrigações legais perante os filhos. Ao passo que, nas cadeias masculinas, os chamados “ladrões de leite” chegam a ser isolados para a proteção da integridade física, assim como os estupradores.
A lei que estabeleceu a pensão alimentícia é parte das ordenações filipinas, baixadas pelos reis Filipe I e Filipe II, datada de 1603. Meu palpite é que 414 anos contribuíram para a digestão social. Mesmo assim, não duvido que, levada hoje a uma comissão especial da Câmara dos Deputados, composta por dezoito homens e uma mulher, acabaria revogada.
Então vamos em frente. E fast. O tempo urge.
A regra deste jogo é adivinhar
por Léo Coutinho