#33InfânciaArteCinemaCulturaSociedade

A chama e o fogo que queimam a casa da criança

por Thiago Blumenthal

A infância não é uma batalha, é um massacre. A frase, claro, é do Philip Roth, e quem está familiarizado com a obra do autor americano sabe que não é a infância, mas a velhice. O que proponho aqui, portanto, é uma subversão, ou melhor, uma extensão desse massacre, uma extensão não para a frente – pois o que há para a frente da velhice? (melhor não pensar) –, mas para trás, como Fitzgerald propõe em sua versão maluca de parábola, com Benjamin Button. Nascer no sopro derradeiro e expirar na placenta da mamãe.

Não quero falar de ficção, não devo, embora a ficção alimente nossas vidas sem que nos apercebamos. A ficção, da velhice e da infância, nos visita toda noite, quando não conseguimos dormir. Ela não pede licença – às vezes pede – e se senta no canto da cama, me observa e, com seu olhar enorme, como o de um deus semítico no meio do deserto, diz, sem dizer, que está à minha espera, somente à minha espera, e que, enquanto eu não chego, prostra-se do lado do portão que separa vida e morte, o primeiro de muitos que iremos atravessar quando partimos para o lado de lá. Quem estará do meu lado? A ficção, sempre ela, a mentira, o simulacro, como querem os intelectuais, a meu lado. Mais ninguém. Mas quando? Por isso preciso atravessar obstáculos em uma floresta, como a de Aokigahara, esse mar de árvores, tentando evitá-la, a ficção, enquanto ela me persegue pela escuridão do dia, pelas frestas da folhagem com o monte Fuji ao fundo. Não divago, embora pareça; apenas detalho.

Enquanto a ficção me persegue, tento não olhar para trás, para minha própria infância, e puxo aquele caso clínico célebre, citado por Freud, da criança vienense que chamava sua mãe não de mãe, mas de meine Tochter, em uma inversão egoica que terminou por fazer a mãe sentar-se no colo da criança aos catorze anos de idade, buscando carinho e proteção na própria filha, enquanto ela mesma deveria estar cuidando de satisfazer todos os caprichos da pequena. Bom argumento para um filme, uma piada de mau gosto, sandice, dirão alguns. Mas não. Verdade. A mãe havia se tornado filha a partir do momento em que esta verbalizara o pronome errado, o nome errado, a gramática errada. A gramática da criação às avessas chamou tanto a atenção de Freud, que, evidentemente, não conseguiu tratar nem mãe nem filha, mas compôs uma linda teoria a respeito da maternidade e da infância (mãe e filha morreriam juntas, em um acidente bizarro, anos depois – tempestade, raio, piquenique).

A verdade nos supera, a verdade me supera, ainda que a mentira esteja atrás de mim pela floresta e venha me visitar toda noite na cama. Nas palavras de Mick Jagger, only get my rocks off when I’m dreaming. Essa história do Freud nos faz pensar muito em nossas experiências pessoais, talvez. É possível. Eu mesmo olho para trás e me pergunto se não carrego comigo muito daquela garotinha do começo do século passado, chamada docemente apenas de “A. Blum”, se não inverti os polos dessa equação da criação e da gramática – e, claro, da semântica. Para Freud, “os instintos mais primevos, ancestrais da srta. Blum-filha haviam desligado em seu sistema psíquico uma ordenação externa default, quando, em contato com uma realidade recriada em uma complexa camada inconsciente, entraram em choque direto com o papel que a sra. Blum-mãe não parecia conseguir cumprir”. Culpa da mãe? Maternidade como veredicto culposo? Longe disso. Apenas uma troca de papéis que a sociedade teima em esconder no fundo do mar, e que fez vibrar fenômenos sociais como o da carnavalização no medievo.

Não caberia, portanto, curar, ou tratar, essas pacientes. Havia ali apenas uma demonstração, ainda que extremada, do avesso do avesso do avesso. Ali estava a cura. No veneno estava a cura. Em outras palavras, para a teoria psicanalítica, caberia à infância o papel de assumir os papéis sociais dos progenitores, em uma idealização digna de uma ficção científica ou de um documentário falso pós-moderno, que pretende mais confundir que explicar. Ao assumir-se como adulto e, mais do que isso, responsável pelos pais, a adorável srta. Blum projetava em seu comportamento um instinto básico humano, presente desde a mitologia mosaica israelita: a criança não passa pela infância e já se torna adulto.

Antropologicamente, e há estudos curiosos sobre o assunto, recaímos no estilo de vida errante do deserto, comportamento este que daria origem a um conceito posterior na legislação judaica, o bar/bat mitsvá. Sob o olhar do Deus mosaico, a criança é alvo. A criança que a mulher de Urias teve com Davi é ferida e posteriormente adoece gravemente. As crianças morrem no sétimo dia. São ofertadas em sacrifício em nome de uma submissão que viria a ser a marca primeira do protoislamismo (e mesmo do islamismo moderno), como no caso de Isaque. Não por acaso, e tudo na Bíblia está condensado em números, é Isaque o patriarca que mais vive, ou seja, mais envelhece; ele que esteve, vamos dizer, na ponta da faca, na cara do gol com a eternidade. Porque não é Deus quem o salva, mas um anjo. Há toda uma discussão talmúdica sobre o sacrifício da criança Isaque, sobre a presença/ausência de Deus e sobre o papel da infância naquela sociedade. Mas deixemos a religião de lado. Afinal, religião caminha de mãos dadas com a ficção. E procuro a todo tempo evitá-la – a ficção, no caso.

A infância é um massacre. A frase, vilipendiada de Roth, soa pesada, histérica. Pode até soar dramática ou melancólica. Cruel. Penso o contrário, apesar de ter noção exata do peso e do valor das palavras, ao escolhermos cada uma delas – cada palavra, uma história; cada sentença, uma vida, na reflexão filosófica. O massacre de passar correndo por uma casa em chamas, o que o pensamento oriental chamaria de aparato humano. Porque a casa não pode desabar, nem queimar como um todo. Eu estou dentro dela. Se queimar por completo ou desabar, morro cedo demais, uma espécie de natimorto na efêmera passagem da vida. Tampouco posso permanecer muito tempo dentro dela; é preciso correr, como uma criança corre pela sala de estar atrás de seu objeto de afeição preferido. Como nunca temos ciência ao certo de qual é esse objeto de afeição ao longo dos anos, o fogo nos consome, porque é desejo, e não se deseja nada nunca, a não ser o próprio desejo de sentir desejo.

Não estamos, diferente da surrada imagem de montanha-russa, em um parque de diversões. Não há ápices nem quedas livres, somente a constante sensação de inércia em um mundo cheio de distrações, sensações, tatos, mãos, rostos. É a casa em chamas, da infância, da criança correndo e se queimando, mas com a proteção, na visão popular, de um anjo da guarda, talvez aquele mesmo anjo que salvara Isaque no mito ocidental tão antigo. Ou como a srta. Blum, aquela por quem Freud tanto se encantara e que morreu tragicamente, polarizando os opostos, chamando pelos pronomes invertidos, olhando tudo, como na imagem da colher, entre o côncavo e o convexo. E, na ansiedade mais humana de ganhar um colo, oferecer um colo. À nossa própria mãe.

Thiago Blumenthal é jornalista e professor do curso de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Originalmente publicado na edição Infância

Assine e receba a revista Amarello em casa