“A invenção da infância”, “A sociedade das crianças”. Cunharam-se muitas expressões a partir do trabalho de historiadores e de filósofos que se interessaram pela gênese da noção de infância no mundo moderno, como Philippe Ariès e Hannah Arendt. A infância moderna suporia a separação clara e precisa entre a criança e o adulto. Ao homem em crescimento e ao homem já crescido corresponderiam mundos próprios, com uma socialização e com uma cultura inconfundíveis entre si.
Haveria uma diferença entre a concepção moderna da infância e aquela das sociedades pré-industriais. Para Philippe Ariès, teria predominado, em épocas como a Idade Média, uma socialização mesclada das crianças com os adultos, para além da família nuclear.
Introduzir o recém-chegado em um mundo adulto não era monopólio dos pais e da escola; era atribuição de uma comunidade mais ampla (vizinhos, agregados, servos, idosos e amigos). A infância durava menos. Não lhe eram estranhos comportamentos que reservamos aos adultos. O trabalho começava cedo. Os tabus quanto à sexualidade infantil não eram iguais aos nossos. Coisa de criança não se refere às mesmas coisas em todas as épocas.
Tampouco essa expressão sempre supôs a mesma rigidez que nós, modernos, lhe atribuímos. É certo que à pintura e à literatura de antes do século XVIII não faltam representações de jogos, trajes ou comportamentos próprios às crianças. Ainda assim, os limites da infância se estenderam e se enrijeceram no mundo contemporâneo.
Eles se alongaram até idades mais tardias, resultado da tendência à diminuição no tamanho das famílias e à queda da natalidade na Europa Ocidental. Também houve um fechamento da infância não apenas em um momento precisamente delimitado da vida, mas em uma identidade própria. A criança é a pureza; a criança só deve brincar; a infância é o tempo dos prazeres simples e da despreocupação. Ela se tornou uma longa “quarentena”, como diz Ariès. Trata-se não apenas de um rascunho para a idade adulta, mas de um mundo à parte, dotado de uma cultura igualmente à parte, independente daquela dos homens maduros. Parte do desconforto dos adultos no mundo dos adultos em nosso tempo provém de sua educação nesse universo infantil, autônomo e autorreferencial.
É o que sugere nossa relação com o gosto artístico. Proust evoca, nas páginas de Em busca do tempo perdido, o fascínio de Marcel, recém saído da infância, pelos versos solenes de Racine recitados pela atriz trágica Berma. A naturalidade com que o narrador relata o episódio parece remeter não ao fim do século XIX, mas a outra era geológica, a outra humanidade. Isso porque, ao longo do século XX, a indústria do entretenimento aprofundou o fosso entre os gostos da criança e os gostos do adulto.
Assistimos, então, à multiplicação de desenhos animados, de músicas repetitivas, de aparelhos ruidosos e brilhantes. Sobrevindo precisamente na época em que o gosto se forma, essa abundância de tecno-entretenimento não contribui à preparação da criança à maturidade e à capacidade de apreciar os versos de Racine recitados por Berma. Antes, acaba por encerrá-la nos estímulos imediatos de um mundo infantil fechado em si mesmo.
Não surpreende, assim, a difusão da estética da cuteness nas redes sociais e na internet. Coraçõezinhos, emojis, florezinhas e balões integram, queiramos ou não, o vocabulário da nossa época. É provável que, para abrandar o paradoxo dos aplicativos de mensagens (uma palavra escrita que quer parecer conversa), mesmo os grandes deste mundo se comuniquem dessa forma, de bilionários a líderes globais. Encaramos sem espanto as filas de adultos no cinema para assistir a filmes infanto-juvenis. Cirurgiões que abrem corpos e engenheiros que erguem prédios retornam às histórias de super-heróis de seus oito ou dez anos com a mesma volúpia do Marcel, de Proust, ao lembrar as tragédias clássicas ouvidas na infância.
A vida do profissional urbano na nossa época é marcada por esse movimento pendular entre, de um lado, o trabalho quotidiano e pesado de responsabilidades com que ganha a vida e, de outro, as distrações despreocupadas em que gasta seu tempo. Não há nada a objetar quanto a isso, sobretudo nos casos em que a capacidade de apreciar a cultura adulta continua viva. Porém, isso talvez seja raro. Afinal, a cultura adulta impõe exigências de pensamento e requer um tempo de contemplação que não se igualam ao imperativo de eficácia, típico do mundo do trabalho, nem à imediaticidade do prazer em que fomos educados pelo tecno-entretenimento infantil.
A existência de uma cultura adulta se encontraria, então, ameaçada por essa preponderância da diversão tecnológica desde a tenra idade? Ela apagará de vez a disponibilidade e o esforço para compreender Antígona ou Don Giovanni? É temerário ser taxativo quanto ao destino de Sócrates ou de Mozart pelos séculos dos séculos. De qualquer maneira, a sobrevivência da cultura adulta parece em parte depender da resistência que as instituições escolares e universitárias opuserem à ludicização da educação, sempre uma tentação para seduzir os estudantes tecno-entretidos desde o berço.
Um risco mais insidioso seria o da tradução da cultura adulta para um público cujo gosto se fixou nos seus primeiros anos. A manifestação por excelência dessa imaturidade é a incapacidade do espectador de distinguir na arte de outras épocas e de outros lugares uma ocasião para descentrar-se de suas preocupações morais ou políticas do dia. Obras do passado são, por vezes, adaptadas ou amputadas apenas para confirmar o público em suas certezas e evitar as reações imediatas características do egocentrismo infantil, restrito ao presente. Carmen não deve mais ser assassinada por Dom José ao fim da ópera de Bizet – como aplaudir um feminicídio? Em uma montagem em Florença de 2018, é Dom José quem é esfaqueado por Carmen. Diante da pressão de estudantes e de leitores infinitamente chocáveis, editores americanos famosamente se servem de advertências (trigger warnings) quanto a temas incômodos em romances de Mark Twain ou de Nabokov.
A infantilização no trato com a cultura pode resultar, assim, em um estímulo à autocensura. O poder público pode também apelar à criança como o álibi perfeito para o exercício de formas explícitas de controle do discurso. A criança não seria um ser autônomo, que deve aprender a exercer desde cedo as capacidades de discernimento e de racionalidade que as sociedades liberais supõem existirem em todos. É como se ela fosse um tesouro de fragilidade que se deve preservar, custe o que custar, dos aspectos incômodos ou violentos da vida humana.
O potencial liberticida dessa ideia é avassalador. Conservadores de todos os matizes sabem disso. Nos anos 1870, o americano Anthony Comstock liderou movimentos pela censura de livros, a fim de resguardar as mentes impressionáveis dos jovens. A tendência desde então se alastrou. E perdura. O antigo guardião da moral Comstock reencarnou no século XXI em figuras como o advogado cristão Jack Thompson, famoso por suas cruzadas persecutórias contra a violência nas letras de rap e nos videogames. Filmes, músicas pop, a Internet: tudo é censurável em nome das crianças. É como se o ato de vedar a representação de realidades cruas levasse à sua desaparição no real. O impulso censor é uma forma de pensamento mágico. Ele mesmo tem algo do egocentrismo infantil.
Essa sensibilidade não está restrita aos Estados Unidos. Ganha projeção em países de tradição autoritária. A lei anti-gay na Rússia de Vladimir Putin tem como justificativa oficial a proteção das crianças quanto a informações que promovam a negação dos valores da família tradicional. O fechamento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, teve como um dos pretextos a preservação das crianças. A polêmica sobre a performance La Bête, de Wagner Schwartz, eclodiu com o vídeo de uma menina tocando o corpo nu do artista. Casos do tipo proliferam no Brasil de 2019 – o mais recente sendo protagonizado na Bienal do Livro pela Prefeitura do Rio. A criança é um outro em que os adultos projetam suas angústias e seus desejos. O álibi infantil é o álibi perfeito. A invenção da infância não diz respeito somente às crianças.
Depois da criança dos tempos modernos, cuidadosamente delimitada em um mundo próprio quanto ao dos homens feitos, talvez tenhamos nos dirigido a outra concepção da infância, menos distinta da fase madura, como já foi o caso entre nossos antepassados medievais. Agora, porém, essa relativa indiferenciação não se daria mais pela mistura do que temos por “comportamentos adultos” (o trabalho, o sexo, as responsabilidades) com a infância, mas porque a própria vida adulta seria guiada pelo gosto infantil e pelas preocupações morais que fantasiamos serem as das crianças. Trata-se de um retorno e de uma inversão inesperados, cujo impacto na vida em sociedade apenas começamos a sentir.
Rodrigo de Lemos é professor na UFCSPA (RS) e doutor em Literatura pela UFRGS.
O Álibi Infantil
por Rodrigo de Lemos