#32TravessiaCulturaSociedade

Viajar é redescobrir: Mário de Andrade sai de casa e encontra o Brasil

por Willian Silveira

A gente pode lutar com a ignorância e vencê-la.
Pode lutar com a cultura e ser ao menos compreendido,

explicado por ela.
Com os preconceitos dos semicultos não há esperança

de vitória ou compreensão.
Ignorância é pedra: quebra. Cultura é vácuo: aceita.
Semicultura? Essa praga tem a consistência da borracha:

cede mas depois torna a inchar.

O Turista Aprendiz (1976)

A História do Brasil tem muitos começos. Em um deles, o mês é abril e o ano 1924. Nesta data, um grupo de artistas aproveita o prestígio adquirido em evento recente – polêmico para uns e constrangedor para outros –, denominado Semana de 22, e anuncia que sairá em excursão pelo país com um único objetivo: conhecer o Brasil.

Na caravana que partiu de São Paulo em direção a Minas Gerais, chamava atenção o ar vanguardista destilado pela trupe capitaneada pelo escritor e bon vivant Oswald de Andrade – a essa altura, já em insistente campanha ufanista para que o chamassem exclusivamente de Osvaldo. Em sua companhia, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado e o poeta suíço Blaise Cendrars. Por último – não porque menos importante mas porque chegara atrasado para a partida – estava a figura de Mário de Andrade.

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Estou meio desapontado. Tudo a gente desconhece neste primeiro contato com a viagem, pessoas, corredores, decorações… Além do mais, me sinto muito urbano, chapéu de palha na cabeça, gravata longa embandeirando no vento… Vou pra cabina, abro a mala, tiro o boné… É extraordinário como as convenções gesticulam por nós. E inda falam que o hábito não faz o monge…

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Se Oswald pode ser considerado o coração do Modernismo brasileiro, Mário é certamente o cérebro do movimento. Diplomado no Conservatório Dramático e Musical da capital paulista, o professor universitário era reconhecido tanto pela sólida formação acadêmica quanto pelo talento para articular com naturalidade temas diversos como literatura, música, etnografia, arquitetura, folclore e artes plásticas. Conta-se, no entanto, que diferentemente dos colegas viajados, o cosmopolitismo em Mário era tão evidente quanto o número de carimbos do seu passaporte. Aos 30 anos, a aventura mais marcante do autor de Pauliceia Desvairada tinha sido sair de casa e ir até o Theatro Municipal de São Paulo.

A anedota tem o seu valor, mas não é fidedigna, claro. Em 1919, cinco anos antes da excursão descrita anteriormente, portanto, e cujo epíteto Oswald divulgaria como “a verdadeira viagem de descobrimento do Brasil”, Mário estivera na cidade de Mariana para encontrar o poeta e amigo Alphonsus de Guimaraens. Ali, o barroco mineiro causara-lhe tamanho impacto que a imersão na singularidade nacional mudaria para sempre a vida do escritor paulista.

7 de maio de 1927. São Paulo. Partida de São Paulo. Comprei pra viagem uma bengala enorme, de cana-da-índia, ora que tolice! Deve ter sido algum receio vago de índio… Sei bem que esta viagem que vamos fazer não tem nada de aventura nem perigo, mas cada um de nós, além da consciência lógica possui uma consciência poética também. As reminiscências de leitura me impulsionaram mais que a verdade, tribos selvagens, jacarés e formigões. E a minha alminha santa imaginou: canhão, revólver, bengala, canivete. E opinou pela bengala.

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Intelectual de perfil múltiplo e prolífico, a inquietação mental valeu a Mário o posto de agitador cultural das principais revistas da época, como Klaxon, Estética, Terra Roxa, Outras Terras, e um legado de 49 obras. Lembrado em especial pelos simbólicos Pauliceia Desvairada (1922) e Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), o trabalho folclórico do escritor recebe até hoje atenção limitada. É nele, contudo, que se pode enxergar um pesquisador criativo, motivado a captar e interpretar com originalidade um país de inúmeras camadas.

O melhor exemplo desse esforço investigativo está nas duas viagens realizadas no final dos anos 20 e registradas no livro O Turista Aprendiz – Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo madeira até a Bolívia, e por Marajó até dizer chega. Concluído tardiamente em 1943 e publicado somente em 1976, 31 anos após a morte de Mário, a edição encontra-se esgotada, contribuindo para a sensação inevitável de que o Brasil ainda tem muito a descobrir sobre si mesmo.

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[7 de junho]. Vitória-régia. Às vezes a água do Amazonas se retira por detrás das embaúbas, e nos rincões do silêncio forma lagoas tão serenas que até o grito dos uapés afunda n’água. Pois é nessas lagoas que as vitórias-régias vivem, calmas, tão calmas, cumprindo o seu destino de flor. Feito bolas de caucho, engruvinhadas, espinhentas as folhas novas chofram do espelho imóvel, porém as adultas mais sábias, abrindo a placa redonda, se apoiam n’água e escondem nela a malvadeza dos espinhos.

Em sua totalidade, O Turista Aprendiz compreende dois itinerários complementares. Na primeira viagem, entre 07 de maio e 15 de agosto de 1927, o escritor conhecerá boa parte da Amazônia, chegando ao Peru e à Bolívia, registrando a época das chuvas e as principais danças folclóricas da região. A segunda, denominada “viagem ao Nordeste”, compreende o período de dezembro de 1928 a fevereiro de 1929. Neste trajeto, sairá do Rio de Janeiro passando por Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba.

Ambas as viagens se tornaram embrião visível para Macunaíma. A chocante história de um herói sem caráter, entendida por muitos como crítica sociológica ao espírito brasileiro, é a tentativa de resgatar a estrutura de rapsódia – Mário faria, então, questão de afastar do livro o termo “romance”, um gênero essencialmente europeu – e gerar um novo formato para a literatura nacional, que buscasse recuar ao primitivismo tropical, ou seja, aos seus mitos fundadores. Ali, na pele do “herói imperfeito”, realiza-se um perfeito panegírico do sincretismo cultural brasileiro.

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Peixe-boi: O que valeu mesmo a pena foi ver o peixe-boi. Come erva com muita educação, sem fazer bulha nenhuma e só entreabrindo a boca. Se falasse, eu mandava ensinar italiano a ele, e o punha num restaurante obrigatório em São Paulo, pra ensinar aos meus patrícios a comer. Infelizmente não fala não. O peixe-boi é uma baleia que só por desânimo deixou de crescer mais.

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Por isso, a base do projeto modernista de Mário de Andrade não se restringiu a debater o conteúdo da modernidade – as fábricas, os carros, os cinemas –, mas em perceber como as características locais têm de conviver com as transformações sociais do início do século XX. No centro do seu conceito de brasilidade reside a proposta de que a identidade nacional somente poderá ser compreendida se levado em consideração um país diverso e em transformação. A unidade estaria no processo de absorver o múltiplo.

Neste aspecto, Mário surge como um intelectual bastante peculiar no cenário cultural. A consciência de que a academia somente poderia fazer sentido se em comunhão com a experiência acaba por propor a ressignificação e a expansão das características nacionais. A união de literatura, política, sociologia e livro de viagem faz de O Turista Aprendiz uma provocação para que aprendamos a redescobrir aquilo que entendemos como já descoberto. Neste caso, é um pedido especial, vindo de quem se coloca no centro do país, para que ampliemos o nosso olhar e nos permitamos ser turistas aqui mesmo. Estar atento ao Brasil é um chamado para ser surpreendido.

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13 [de janeiro]. Passeio a cavalo pela manhã sem sol. Chupar cajus no mocambo, lugar aprazível da propriedade… De noite escuto dois cantadores pernambucanos numa casa de adobe, gente circunscisfláutica, sem gosto de terra, falando bem, bestas. De longe se escuta um zambê noutra casa de empregados. O som do bumbo “zambê” se escuta de longe. Vamos lá. O pessoal dança passos dificílimos. O tambor bate soturno em ritmo estupendo. Estou no meu quarto e inda o zambê rufa no longe. Adormecerei e ele ficará rufando. Pleno século XIX. Plena escravidão. O senhor de engenho. Gente humilhada na pobreza servil. E o samba. Minha comoção é dramática e forte.

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As descrições de Mário revelam um homem fascinado pelo que encontra. Tanto pelo Brasil que surge dia após dia quanto pelo Brasil que deixa de ser o que lhe contaram. Ao calibrar a sua visão, vemos um país desgarrado dos padrões europeus, desapegado do olhar pautado pelo exotismo absurdo e das amarras do pudor cristão. Aos poucos, a cada antiga novidade, percebemos nascer um país mestiço: mais indígena e africano, mais caboclo e caipira. Vislumbramos a possível descoberta do Brasil – finalmente:

8 [de fevereiro]. Seis horas e me apronto pra partir pro Recife. No café Odilon do Jacaré se despede de mim com o Boi Valeroso, dizendo que me rogava a praga que eu havia de voltar e depois disse que eu devia me casar. Passamos pela “rua” que limita Pernambuco e Paraíba. Estrada agora boa e terra melhora bem nos serrotes. Engenhos, usinas, decauvilles, gente. Pouco antes de 10 horas passamos Goiana onde fotografo duas igrejas velhas. Dois guardas-civis na cidadinha. Prefeitura emproada. Pouco depois cai uma chuva danada que só passa depois de atravessarmos sem ver, no auto fechado, Igaraçu. Depois Olinda. Os bondes vêm com serpentinas me aplaudindo. Recife às 12 horas. Andei procurando um Maracatu que não achamos. Mas pelas vinte e duas horas, caímos todos no frevo do Vassouras. Loucura e formidável porre de éter.

Texto originalmente publicado na edição Travessia

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