Editora de Artes Plástica da
edição Amarello Presente
“É isto que amamos nos outros: o lugar vazio que eles abrem para que ali cresçam as nossas fantasias. Buscamos, no outro, não a sabedoria do conselho, mas o silêncio da escuta; não a solidez do músculo, mas o colo que acolhe…
Como seria bom se as pessoas fossem vazias como o céu e não tão cheias de palavras, de ordens, de certezas. Só podemos amar as pessoas que se parecem com o céu, onde podemos fazer voar nossas fantasias como se fossem pipas…”
Rubem Alves
O presente chegou tão bem embrulhado que foi difícil abri-lo. Um presente atípico, ofertado numa circunstância permeada pelo medo e pela incerteza.
Quando abracei meu presente, me deparei com um momento novo, estranho até, por me defrontar com uma realidade completamente diferente do que, até então, havia vivido.
Mudei de cidade e casa por tempo indeterminado. O que mais valeu foi usufruir do acalanto de minha mãe, um tocar na alma e um pulsar que há muito não experenciava; deixar para trás uma vida automática para aprender a viver um dia após o outro, tentando não projetar uma visão de futuro. Fui adentrando e percebendo que era uma questão de ajuste.
A desconstrução de um tempo, a construção de outro tempo, a transformação, a reinvenção, a readaptação, tudo mexido e misturado, tornando aquele momento um desejo de finitude quase que real.
Tentei construir um universo que me lembrasse um pouco do que ficou para trás – meu ateliê –, me debrucei, mergulhei e me senti um pouco mais perto do meu âmago.
Foi assim que comecei um trabalho totalmente novo para mim, tendo como universo o ambiente doméstico.
Parti dos objetos da casa de minha mãe, com os quais tenho uma relação quase amorosa, e fui tentando humanizá-los e ressignificá-los.
Trabalhei com diferentes aspectos da casa, com a poética do espaço, ampliando o significado da casa e sempre me perguntando: qual a relação de memória com esse lugar?
Fui criando provocações para mim mesma, atravessando essas possibilidades.
Meu silêncio junto com o silêncio do lugar, o eco da casa, fizeram transformações no meu trabalho; algo novo começou a surgir, como esse tempo presente.
Um fato curioso aconteceu pouco antes da quarentena começar: no dia 13 de março, abri uma exposição intitulada O Possível Para Hoje à Noite, que partiu da multiplicidade de interpretações do presente na plasticidade da instalação apresentada. O sentimento de aversão, a sensação de incerteza do tempo, o obscuro e o nada foram ideias que transitaram no meu imaginário, e, com esse trabalho, materializei “o desejo real”.
Existe uma analogia, a materialidade daquele trabalho e o tempo presente. O fato de não identificarmos, num primeiro olhar, o que é, causa um impacto de dúvida e impotência e cria uma avalanche de incógnitas no espectador.
Esse corpo estranho quase escultórico cria formas abstratas que sugerem contornos figurativos, silhuetas enigmáticas que buscam presentificar-se por uma ambiguidade erótica e soturna.
Qual a poética deste presente? Qual a poética presente neste momento?
O laço do presente, o presente desejado, o estar presente, abdicar do presente, o afeto do presente, o presente da vida, a escolha do presente, o presente incerto, a surpresa do presente, o presente da conquista, o amor como presente, o perdão como presente, a ilusão do presente, o presente coletivo, a expectativa do presente, o presente de se reinventar, o presente hoje, o presente da pausa, o presente com a alma, a dor do não presente, a euforia do presente, as perdas do presente, o presente como escolha, a arte do presente, o urgir do presente, o presente obscuro, a magia do presente, o presente sem presença, o silêncio como presente, ser presente, a cor do presente, o deleite do presente, a loucura do presente, o presente inesperado, a escolha do presente, o presente gratuito, o presente do gesto, o presente exaurido, a negação do presente, o presente frágil, o presente abstrato, o presente indignado, o presente impróprio, o papel do presente… Que presente!