#35PresenteCulturaLiteratura

Distância de contato

por Francesca Cricelli

A veces no hay tiempo para confirmar el desastre.
(Samanta Schweblin, Distancia de resgate)

Não nasci para ser longevo. Aqueles como eu já vêm ao mundo com os dias contados. Somos somente uma parte da engrenagem. Nasce-se para alimentar o outro; existência fugaz. Entre o ímpeto e uma brecha, fugi ao meu destino e, por isso, ainda estou por aqui, posso contar-lhes minha história.

A última manhã da minha velha existência raiou como todas as que haviam-na antecedido. A rotina, na correria dos dias, obrigava-me a seguir pedalando, como tantos outros, empenhado em girar a roda interminável do ser. Vivia, naquele então, como se o ritmo fosse sempre ditado por outrem. Nem mesmo minha fome nascia das minhas vísceras. Vivíamos num espaço apertado, eu, meus quatro irmãos, duas irmãs e alguns colegas sem moradia fixa. Mas isso, o excesso de corpos em pouco espaço, nunca foi um incômodo para mim. Há algum tempo, porém, perturbava-me a falta prolongada dos nossos pais; era comum se ausentarem, mas não assim, por tempo indeterminado.

As mesmas mãos que vieram pelos meus pais se apresentaram no limiar da porta de casa. Dedos longos, firmes e rosados, as pontas levemente calejadas, as unhas polidas, denunciavam outra maestria, algo de cordas e arcos, sopro e oclusão, algo alheio ao que faziam ali, mãos que enfim vieram por mim, vieram por nós. Seguimos, sem saber o destino, amontoados, chacoalhando no escuro.

Pelo abrir e fechar das portas, havia duas ou três antessalas antes de chegarmos ali. Ainda no breu, apinhados, ouvíamos chacoalhos, um atrito de anéis, um coro de sibilos. Pressentiam a carne, nosso sangue quente, vibravam, e nós, ainda sem saber ao certo o paradeiro, incrédulos, sacolejávamos.

A primeira a ser agarrada entre os dedos firmes e rosados foi minha irmã mais nova. Depois, meu irmão do meio; em seguida, o mais novo; depois, nosso vizinho. A morte desfilando diante de mim. Ainda que não pudesse vê-la, eu a ouvia nos guinchados. Quando, por fim, chegou o momento da minha extração, debati-me, dificultei a aferição, mas acabei sendo agarrado pela cauda. Oscilei algumas vezes e previ a distância de contato entre os dedos que me sustentavam e a boca da serpente. Não era um ofício dos mais fáceis esse de segurar-me com uma mão e com a outra empunhar a vara com gancho — do tipo com dupla pinção dobrável — para deter a fera em plena orexia. Havia aí talento e destreza nessa peça de engrenagem que faz mover a máquina que leva a presa à boca, a fome ao alimento. Quando o sujeito deslocou o olhar para certificar-se de que havia empunhado bem o gancho e que a pinça detia devidamente os movimentos da jararaca, iniciei meu balé de resgate. Há uma sabedoria no corpo; não sei de onde vem. Há algo que insiste, um quinhão de vida a subjugar a morte. Rodopiei com todas as minhas forças sobre o meu próprio corpo, uma e outra vez, à direita e, depois, à esquerda. Fiz-me pêndulo, fui peão, Nijinski e Nureiev, ensaiei piruetas infinitas sobre a extensão de minha coluna vertebral. Poucos sabem, mas nós e outros cordados temos na cauda a extensão de nossa coluna vertebral. É ela a responsável pela termorregulação em nossos corpos, dilatando e contraindo os vasos para que o sangue flua de acordo com sua necessidade. É ela que o resfria e faz com que retorne ao corpo com uma temperatura mais baixa. Mas não é só essa sua função: é ela, em toda sua extensão, o nosso prumo, o nosso leme, o que ampara o equilíbrio.

Entre morrer intacto e agarrar-me à chance do porvir, mesmo amputado, optei pela segunda alternativa: seguir. Nem todos podem se entregar à dança macabra das ablações; há o medo de não resistir diante de um corpo despedaçado. Claro, não se corre nem se salta da mesma forma ao ser privado do que nos norteia o equilíbrio; é existir sem o labirinto, que em nosso caso habita a periferia do corpo. Antes de medirmos a distância de contato entre a própria pele e a boca do abismo, vivemos embebidos na fantasia da integridade e da inteireza. Mas esse delírio era adequado à primeira parte da minha existência, àquela em que vivia para fazer girar a roda dos dias. Às vezes não há tempo para confirmar o desastre. Não perdi por completo minha agilidade, foram alguns dias em fuga entre qualquer fissura possível até que se abrisse uma porta, depois outra, e mais uma. O presente da liberdade custou-me a cauda. Debrucei-me sobre o abismo antes de encontrar meu canto no jardim do Butantã.

Ilustrações de Mateus Acioli

Convidei a poeta, escritora e tradutora Francesca Cricelli1 para abrir esta nova seção literária da revista, da qual muito feliz cuidarei. O presente que me é ofertado eu partilho com entusiasmo. Francesca é dessas pessoas que deixam rastilho aceso por onde passam e por onde seus textos chegam. Habitante de muitas línguas, doutora em Letras Estrangeiras e Tradução pela USP, Francesca viveu a infância entre o Brasil e a Itália, a adolescência na Malásia, e, depois, ainda jovem, entre Barcelona, Florença, Nova Délhi, Cidade do México e São Paulo. Hoje, mora em Reykjavík. De muitas dessas encarnações de sons, espaços e tempos nasceu o livro Repátria (Brasil: Demônio Negro, 2015 / Itália: Carta Canta, 2017) e, também, o mais recente Errância (Brasil: Dulcinéia Catadora, 2018 / Islândia-Brasil: Edições Macondo e Sagarana forlag, 2019), com suas crônicas de viagem e ficções autobiográficas. 

Se, como lemos num de seus poemas mais comoventes, “é uma longa estrada repatriar a alma / a rota é na medula”, sabemos que essa viagem do sangue encontra sua bússola mais potente na palavra, e na hora mágica da palavra: a poesia, a literatura. Errar em sua busca é tornar o corpo presente, na contínua demanda ética por um mundo pautado pelo diálogo, pela escuta e pela coragem da alegria. 

Especialmente para a Amarello, Francesca respondeu à presença da literatura com este magnífico miniconto. Nele, ouvimos de um narrador incomum sobre a situação de seu destino (e o nosso): estar diante da morte, esperar pela boca da serpente. E quem não o sente, especialmente nos tempos atuais, cuja violência conservadora de fascismos de mil faces paira como mão sombria a tentar controlar nossos corpos, conduzindo-nos à asfixia e à ausência de perspectiva?

Mas eis que a literatura sublinha sua audácia: a subversão, o risco libertário de qualquer ser que ousar buscar sua voz e ouvir as vozes daqueles que questionam o girar de uma roda invariável. 

Há respiro enquanto houver presença, e haverá presença onde o corpo insistir em desviar-se, hábil, vivaz, eloquente, das goelas abissais de um presente assustador.

Roberta Ferraz,
editora de Literatura


1Nascida em 1982 em Ribeirão Preto, Francesca Cricelli é poeta, pesquisadora e tradutora literária. Doutora em Letras Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo, publicou os livros Repátria (Demônio Negro, 2015), 16 poemas + 1 (edição de autora, 2017 e 2018), As curvas negras da terra (Nosotros, 2019) e Errância (Macondo e Sagarana forlag, 2019). Atualmente vive na capital mais ao norte do mundo, Reykjavík, onde estuda língua e literatura islandesas na Universidade da Islândia.