Poder e Racionalidade
Existem duas grandes entidades capazes de uma transformação essencial na realidade que conhecemos, atravessada pela crise pandêmica do coronavírus. A primeira delas, já claramente nomeada no século XX, é a Complexidade. A segunda, vemos nascer hoje aos prantos na sociedade globalizada, a Incerteza, vivida como sinônimo de insegurança. Como entidades míticas, estão presentes desde o começo dos tempos, surgindo a cada Era com seus próprios nomes.
As duas grandes entidades desferem um agudo golpe narcísico no paradigma de masculinidade ainda cristalizado, que se baseia na articulação de Poder e Racionalidade. Esse masculino criou um mundo para sua morada, um conhecimento para sua expansão e uma ideia de vida para gozar de si mesmo. Fez desses dois recursos espada e escudo, martelo e prego, pena e papel. Ferramentas plasmadas nas organizações, na tecnocracia, no intelectualismo, nos poderes instituídos e suas polícias, na relação com a natureza e com dinheiro, resumidas hoje na imagem do homem branco de terno e gravata e seus análogos pós-modernos.
Por cerca de quinhentos anos, esse homem trabalhou intensamente, fazendo dos mundos, conhecimentos e vidas plurais um mundo único, um conhecimento único e uma vida única, ao ponto de ter atraído para si, o que é de toda mitologia ou soberba, sua própria ruína. Açoitadas, Complexidade e Incerteza lançam um adversário ferrenho, a subversão do que o homem buscou como qualidade: Corona simboliza “poder”, símbolo máximo do domínio sobre o mundo material. Vírus vem de virius, que significa “homem” – de onde surgem as palavras virilidade e virtude.
Mas, como herói, esse homem fracassou retumbantemente, e, como Hidra, Complexidade e Incerteza apenas crescem à medida que as armas Poder e Racionalidade contra-atacam cada vez mais violentas.
O Poder não pode senão reduzir a Incerteza ao contorno do nomos, do controle, do visível como matéria, conceito ou informação. Mas incerteza se faz sempre às margens, e assim, quanto mais poder, maior a marginalidade que ele produz. Das bordas da margem, no invisível e desconhecido, acena a Incerteza.
A Racionalidade não pode senão travesti-la de dedução e conjectura, fragmentando a Complexidade, dualizando a realidade – verdadeiro ou falso, risco ou segurança, sucesso ou fracasso. Mas a Complexidade mora justamente no entrecoisas, nos sentidos que atravessam as “partes” cortadas de realidade, e, assim, quanto maior a fragmentação (vide a realidade multitarefas do isolamento social em um contexto familiar), maior a Complexidade.
Nas últimas décadas, este termo passou a significar o hype, como uma hipermetodologia que precisamos para lidar com uma hipernormalidade. Um esforço computacional – “big data” – e uma aceleração da linearidade que levanta voo – “exponencial”. Tudo como era antes, só que complexo. Como se o Tudo e o Todo não tivessem diferença. Por via das dúvidas, no elã quantitativo, ficamos com o Tudo em conotação de materialidade vantajosa, objeto direto do verbo ter. O homem-Tudo.
O problema pandêmico aciona uma atitude quase generalizada de interpretação, especulação e análise de dados de um lado e, de outro, o fechamento completo, negacionismo violento da ciência ou das possibilidades além da razão. Poder e Racionalidade, em ambas versões, fazem juntas o parto da certeza. Os dois lados pressentem a notícia de que sim, o mundo acabou. Para a arrogância reducionista do homem-Tudo, se seu mundo acaba, o mundo acaba e usamos a complexidade para farejar com pressa o que vai emergir – yes, nós temos tendências. Só podemos largar uma certeza por outra, mais atualizada.
“Emergir”, para essa masculinidade, se refere às novidades, padrões “obviamente inusitados”, kickoff da versão mais recente. O homem-Tudo já está expert no “novo normal”. “Antifrágil”, “Ágil”. Pela lente de última geração do Poder e da Racionalidade, a Vida se torna identificada com a estratégia de adaptação, resiliência, edeseja permanência através de suas atualizações.
Proteger-se na crise toma o sentido do isolamento e do acúmulo de recursos, mas ai de quem tocar nas minhas liberdades individuais – uso máscara seu eu quiser, “com quem o senhor pensa que está falando?”. Respondemos ao contexto atual com mudanças que ironicamente servem para resistirmos à transformação. Mudanças resolvem problemas, ao passo que transformações – habitar o que está entre, através e além das formas – deslocam as premissas do mundo.
As duas entidades passam a ser um problema para se resolver – o mundo V.U.C.A. –, e devemos conquistá-las criando uma certeza altamente desenvolvida ou ser derrotados, aniquilados pelo caos destruidor – antes ser engolido pelo caos que se vulnerabilizar.
Complexidade e Incerteza
Torná-las um problema é justamente o que nos obriga a uma direção única na interação com a realidade imposta: resolvê-las, planificando nossos próprios mundos.
A Complexidade, que desobedece a todos os sentidos da palavra plano, não nos coloca problemas – estes vêm de um pensamento inadequado ao seu contexto –, ela coloca a vida. A problemática da complexidade acontece quando, em vez de aceitarmos perder o posto do saber e controlar, insistimos nos sentidos que já temos para aquilo que ainda não se sabe (se oferece). “Tudo” é uma palavra estática. O homem-Tudo não consegue se deslocar para a complexidade.
É necessário outro pensamento para descrevê-la e sustentá-la. Uma linguagem própria para a Incerteza, que aproxime a Complexidade, sem conquistá-la. “Emergir”, nessa linguagem, é como a escuta das lacunas, das fendas nascertezas. Precisamos agora mais de Sentido – uma finalidade, um ir em direção a, disposto a abertura do caminho, contendo em si o sentir, o desvelar – do que de Significado – uma correspondência fixada, nome de coisa, fechado, pretensiosa verdade –, pois o homem-Tudo carece do primeiro e excede no segundo.
O que estamos vivendo como realidade social é flagrante dos limites de um modo de pensar e perceber a realidade. Como entidades sobre-humanas dessa mitologia contemporânea, Complexidade e Incerteza guardam uma benevolência misericordiosa uma vez arrefecido o ímpeto do homem-Tudo por Poder e Racionalidade.
As entidades não pedem necessariamente o fim desse homem, mas sua abertura. Abertura à Vida, que se torna identificada não mais à estratégia e à permanência, mas ao processo e à continuidade. Vida que não temos, mas nos atravessa; à qual não damos ordens, e sim damos passagem. Complexidade ela mesma, sem reduções interpretativas.
Proteger-se, então, como entrar em relação (mesmo que à distância), interdepender e deixar-se atravessar, compartilhar sentido mesmo que incerto. Incerteza deixa de ser insegurança quando nos ancoramos no sentido compartilhado. “O” mundo se dilui, fazendo emergir “os” mundos, e o que os pertence se torna um cosmo maior – o Todo.
Complexidade e Incerteza, escutadas pela masculinidade, falam de outro homem, o homem-Todo, cuja atividade é buscar coerências no lugar de certezas. Coerências em movimento. A orientação a uma verdade única (seja progressista ou conservadora), a um poder único, pode dar lugar à integração, à reflexão que assuma a frágil experiência de ser homem neste tempo. O homem-Todo aprende a descentralizar a si mesmo quando a multiplicidade do mundo se encontra em uma mesma atitude: escuta.
Permanência e Continuidade
A crise não pode ser escutada senão através de sua cacofonia. Poder e Racionalidade não estão dando conta e não podemos permanecer. Estamos impedidos de ser, neste momento, a demanda atendida, o problema resolvido. Não mais respondemos à realidade-problema, e sim integramos a realidade-questão. A crise transborda uma mera reorganização das coisas, um “fazer assim” em vez de “assado”, a busca apressada do “novo normal”. Inferir que há uma mensagem a ser capturada pode mesmo nos impedir de ouvi-la em sua própria voz.
Ouvir. Pois a Incerteza quase nunca é algo que sabemos escutar. Pois o nascimento do homem-Todo não depende tanto da linguagem em que descrevemos esta crise quanto da linguagem em que a escutamos. Incerteza nos fala de transformação, e transformação não é uma solução de problema, mas a abertura à finitude de uma permanência. Incerteza ela mesma, sem interpretação.
A continuidade, no lugar da permanência, não fecha contornos visíveis. É processo, intuída no salto da semente ao ramo e deste ao fruto, sentida na sucessão de identidades que somos ao largo da vida e das gerações no tempo e simbolizada nos ciclos, nas espirais e toroides, mas não pode ser tomada pelo poder nem decifrada pela racionalidade.
Pode ser angustiante conviver com a diligência de não fechar contornos nas questões que vivemos, questões envolvendo identidade, destruição, morte, isolamento, finitude. Mas é justamente nessa atitude que podemos aproximar a Complexidade e quiçá aprender com ela a transferir nossa identidade ao que continua, mas não permanece.
A angústia é a marca de uma maneira de existir que intui seu fim. Esse mito, a partir da pandemia, se encerra com dois pontos, ao que segue o fim do texto e a continuidade do leitor: