Devo confessar que foi ligeiramente incômodo escutar, pela primeira vez, que eu possuía um rosto masculino. Inicialmente atribuí por impulso esta percepção pela semelhança que tenho com meu pai: trazemos os mesmos olhos indígenas, meio rasgados, o formato oval e alongado da face, a testa profunda. Aos poucos, compreendi que esta característica está adiante da herança paterna. Não tenho a menor dúvida de que meu franzino corpo não evoque qualquer entusiasmo viril, qualquer ímpeto de violência, como é de se esperar da masculinidade; mas reconheço que certa seriedade, forjada no peso dos anos, talvez tenha contribuído para a construção dessa máscara. Este masculino que em mim habita está impregnado em minha superfície: terno e grave ele se ancora, sem brigar com sua dualidade. Ambos os lados mantêm em silêncio acordos tácitos de camaradagem e sobrevivência.
Sinto que meus masculinos e femininos não devam ser acessados como forças opostas em tensão ou como lados complementares, mas como partes fulgurantes que constituem um mesmo corpo. Cada um deve ser apreendido pela sua autonomia e totalidade, distante do antagonismo notório que conhecemos e que os definem ora como luz, ora como sombra.
O que pode uma mulher, enquanto corpo, saber do masculino? Se há algum sentido nesse movimento, ele é feito em parte pela perda, pelo desejo de aproximar do que nos falta. A falta aqui é compreendida não como uma parte negativa inerente a dois pólos coexistentes, mas como o vazio pelo qual percorremos sem saber muito como; pela via do estranhamento da apropriação de um gênero diferente àquele que nos é dominante. O processo de identificação de uma mulher com seu masculino passa também pelo reconhecimento da assimetria da qual somos feitas.
Fora do corpo, o traço másculo torna-se evidente naquilo que é dominado por funções maquínicas, mecânicas e, principalmente, repetitivas. É o traço dotado de retidão, que se apresenta como uma flecha: capaz de grandes esforços em um só fôlego, percorre longos trajetos sem desvios, afinal, não é um corpo maleável, nem flexível. Sua maior virtude é a objetividade.
Tentemos nos desvencilhar desta noção de contrários. Não se deve destituir o masculino de nenhum corpo, de nenhum espaço. Até porque quando digo “o masculino” não me refiro, necessariamente, ao homem. Ao segundo é reservado uma função social, um jeito de ser e estar no mundo. Ocasionalmente, eles coincidem de ocupar o mesmo corpo.
Em seu romance Malina, Ingeborg Bachmann afirma que “de um homem a outro, um corpo de uma mulher precisa perder todos os seus hábitos e readquirir hábitos totalmente novos. Mas o homem prossegue calmamente em seus hábitos; às vezes tem sorte; na maioria das vezes, nenhuma.”. Isso me faz pensar na quantidade dos músculos de uma mulher que são contraídos durante um orgasmo, na relação destes com o jato de alívio do gozo do homem, e seu relaxamento imediato. Imagino como seria se os homens pudessem gozar indefinidamente, sem tempo refratário, na medida expressa do seu prazer. O gozo fálico é em si um coito, firme e pragmático. Já um orgasmo múltiplo, este tem em sua natureza um compilado de interstícios, uma gama de espaços vazios como aqueles a que estamos socialmente acostumadas a preencher dentro de uma relação, sexual ou não.
Na equação naturalmente desequilibrada dos conjuntos, fico me perguntando porque nos parece mais confortável alinhavar a ideia do masculino dentro do feminino do que vice versa; para que um corpo se transforme, ele precisa estar disponível para se metamorfosear, se dissolver e fundir com o seu meio. Deve estar preparado para ganhar, assim como para perder. Quando uma mulher encontra — e assume — o seu masculino, ela invariavelmente começa a perder. Primeiro vê suprimir uma parte de si, para enfim em seu exterior ver subtrair algumas de suas relações, na maioria das vezes as de menor importância.
Penso que é preciso fomentar o masculino de sua instabilidade, dotar o vigor de crises. Não uma crise qualquer, mas da instabilidade crítica de sua própria essência, como a que posso enxergar no estado de um corpo que se lançou no abismo e ainda não aterrissou. Este corpo enquanto permanece em queda livre, mantém sua confiança atávica. Tenta resistir ao vento, apesar da certeza do baque. Rígido, teso e seguro de si toca o chão, para em seguida se esborrachar.
No esfacelamento de sua retidão, na inevitável constatação de sua impotência bélica, eis um retrato da masculinidade que me parece mais interessante. E ele tem a beleza de um homem triste, consciente de seu fracasso.
Em queda livre
por Luísa Horta