O asfalto estava frio quando Ennis Del Mar desembarcou do caminhão que lhe deu carona e firmou as botas de vaqueiro na estrada. Àquela altura da manhã, a fricção dos pneus e os raios do sol ainda não haviam despertado sobre nenhuma das tantas rodovias que cortam o ermo estado de Wyoming. Ali, no extremo noroeste dos Estados Unidos, em um território esquecido entre as Grandes Planícies e as Montanhas Rochosas, o cimento é a matéria-prima preferida quando se trata de construir estradas e corações masculinos.
Deste início até a primeira conversa entre Del Mar e Jack Twist, acompanhamos uma sequência visualmente simbólica para compreender o que estará em jogo no restante de Brokeback Mountain. Para representar a masculinidade com precisão — ou, ao menos, o que significa ser homem à sombra de John Wayne —, Ang Lee percebeu que não bastaria contar com dois protagonistas talentosos e uma história envolvente. Assim como a natureza na mitologia do Western, que surge como o desafio primitivo a ser domado, seria pre- ciso personificar outro aspecto primitivo, fundador das relações masculinas, o qual seguimos sem domar — o nosso silêncio.
Romper com os arquétipos, como Brokeback faz com a figura do herói americano, é a metodologia adotada para iniciar, se não a mais completa, certamente a mais didática exposição sobre o mundo masculino. Concebida pelo Barbican, em Londres, Masculinities: Liberation through Photography imprime na transparência do título uma proposição ao mesmo tempo política e educativa. Ao passo que apresenta a proposta de ilustrar a pluralidade de manifestações pelas quais a masculinidade pode ser expressa, a exposição também critica o papel opressor da imagem na formação de um ideal de masculinidade dominante.
Pensada a partir de seis eixos temáticos, Masculinities exibe o trabalho de mais de 50 artistas de todas as partes do mundo, distribuindo-os a partir de propostas como: Rompendo com os arquétipos; A ordem masculina: poder, patriarcado e espaço; Muito perto de casa: família e paternidade; Masculinidades queer; Reivindicando o corpo negro e Mulheres sobre homens: invertendo o olhar masculino. O escopo abrangente contempla o vocabulário visual que vem dos anos 60 até hoje, e tem a virtude de unificar sob uma mesma ótica artistas distintos como Karen Knorr, Catherine Opie e Rotimi Fani-Kayode.
Logo de início, Masculinities inaugura o olhar do público com Self-portrait (1994), de John Coplans, uma sequência de quatro imagens que segue a linha de investigação do fotógrafo inglês, interessado em depurar o envelhecimento do corpo e a fragilidade trazida pela idade. Nas telas de grande proporção, a força dos músculos e o viço da pele são os elementos ausentes diante de um corpo que simula posições do estatuário greco-romano. Harmoniosamente concebidas para exibição em público, as obras clássicas representam a finalidade impossível de tudo aquilo que é submetido ao tempo, ressaltando o injusto lugar que cabe ao corpo flácido e envelhecido na sociedade atual, legado à vergonha e ao esquecimento.
Reconhecido pela técnica apurada na encenação das imagens, o israelense Adi Nes exibe a série Soldiers (1994–2000). Nela, o fotógrafo faz uso da fama militarista de seu país para registrar os soldados em instantes de lazer. Produzidas nos acampamentos do exército, as imagens atacam o conceito de masculinidade como sinônimo de virilidade e heterossexualidade, ao registrar instantes em que a naturalidade se confunde com afetividade e tensão sexual.
A alemã Karen Knorr, por sua vez, aparece com um dos seus trabalhos de maior destaque, realizado nos anos 80. Gentlemen é fruto do período em que Knorr viveu em Londres para estudar fotografia. Durante esse período, conseguiu acesso às fraternidades e aos clubes masculinos, bem como à alta sociedade inglesa, compondo a partir desse material um instigante corpus documental que representa a masculinidade como sinônimo de um poder que opera unicamente com o objetivo de expandir e perpetuar a sua influência na esfera pública.
A abordagem temática da exposição permitiu o diálogo entre linguagens distintas, como no caso do premiado fotógrafo da Magnum, Thomas Dworzak, da performática Catherine Opie e do flaneurismo de Sunil Gupta. Prova de um olhar eminentemente lírico ainda quando em situações extremas, Dworzak exibe Taliban Portraits (2002), um registro que consegue projetar os fundamentalistas islâmicos distantes da imagem de brutalidade e virilidade esperada. Se Dworzak ilustra o realismo desconhecido do grupo terrorista, por outro lado, Opie apresenta Being and Having (1991), uma série de retratos coloridos, em que amigas lésbicas brincam com bigodes falsos, tatuagens e acessórios associados ao estereótipo masculino, denunciando o caráter lúdico e artificial da masculinidade. Nesse conjunto performático, as cenas montadas de Dworzak e Opie ganham a companhia do indiano Sunil Gupta. Radicado no Canadá desde jovem, Gupta explora o reduto gay de Nova York nos anos 70 em Christopher Street. A série registra os primeiros movimentos da comunidade homossexual na esfera pública, produzindo um belo inventário do processo de libertação desses homens e da busca por um novo repertório para realizar as suas identidades na sociedade.
Conhecido por Ravens, potente obra de caráter confessional em que registra o luto pela esposa, Masahisa Fukase apresenta um trabalho de longo prazo. Após ser acometido por uma doença séria, o fotógrafo japonês inicia Family, em que propõe a releitura das fotos de família. Durante duas décadas, Fukase ergue uma memorabilia peculiar, entrelaçada pela ironia de conviver com quem nem sempre gostamos ou desconfiamos não conhecer muito bem. O resultado propõe a refundação da estrutura familiar a partir do embaralhar das posições de poder, justamente no seio da tradicional sociedade oriental.
A dificuldade de ser imigrante e o extravio do desejo que a acentua são os pilares da obra de Rotimi Fani-Kayode. A dupla perda — do país natal e do corpo negro — habita o horizonte do fotógrafo que, aos 12 anos, teve de fugir da guerra civil na Nigéria. Em solo inglês, Fani-Kayode recupera na imagem aquilo que não encontra em vida. Encenados a partir do jogo de luzes, do contraste acentuado e da presença de elementos da cosmologia yoruba, os registros em preto e branco subvertem propositadamente o purismo da linguagem de poder e desejo do universo ocidental, representado em Richard Avedon e Robert Mapplethorpe, para elevá-lo à categoria de ação, reivindicação e gozo.
Não menos importante, a visão feminina encerra Masculinities como a responsável por entregar uma nova perspectiva ao tema. Possível unicamente após os esforços do movimento feminista das últimas décadas, finalmente a masculinidade passou a ser olhada desde fora, vendo-se obrigada a estar no lugar do outro. Transformar o sujeito em objeto é a proposta da artista visual Laurie Anderson em Fully Automated Nikon (Object/Objection/Objectivity), de 1973. Nessa série, Anderson se apropria do desconforto causado pelo assédio masculino e o converte em ação. Ao registrar os homens que lhe dirigiam comentários na rua, a fotógrafa recupera para si o poder do olhar, reenquadrando a objetificação ao expor seus personagens com os olhos borrados, em um claro movimento na direção de apagar as suas identidades e individualidades.