Em 2019, escrevi para a Folha de S. Paulo sobre o mal-estar na identidade masculina que parece moldar a política dos nossos tempos. Na oportunidade, eu tentei mostrar como, quem quer que tenha se mantido atento aos principais fenômenos políticos dos últimos anos, deve ter reparado que o debate público tornou-se aparentemente explosivo, cada vez mais a incitar a sanha de determinada parcela da população masculina por autoridade, domínio e controle.
Para a jornalista Catherine Bennett, colunista do jornal britânico The Guardian, as palavras de ordem utilizadas por políticos conservadores ao longo da campanha para o referendo do Brexit, em 2016, bem como durante o longo processo de desligamento do Reino Unido da União Europeia, exerceram um forte apelo entre os homens.
Igualmente, poderíamos dizer que os bordões da campanha de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos surtiram efeito semelhante. E que, também no Brasil, o apelo político ao tradicionalismo contou com o entusiasmo desse segmento social.
Diante destes e de outros fenômenos, a atenção da mídia voltou a concentrar-se nos homens. Só que, desta vez, ao invés de celebrar suas conquistas, buscou-se explicações para o que estava acontecendo. E, como se todos houvessem sido surpreendidos pelo desajuste de uma pessoa próxima, puseram-se a questionar com preocupação: afinal, o que querem os homens?
De lá para cá, não foram poucos os textos que surgiram sobre uma provável crise em nosso conceito de masculinidade. Muito se comentou da situação dos homens nas camadas da sociedade norte-americana que se sentiram desassistidas pelas lideranças políticas frente às consequências da crise econômica de 2008.
Em junho de 2016, o advogado e escritor J. D. Vance lançou Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis. Nesse livro, ele retrata o desespero das populações brancas em situação de indigência na região dos Apalaches, ressaltando como o desmonte da indústria metalúrgica na região teria afetado os homens que viram desaparecer, de um dia para o outro, seus empregos, o que contribuiu, dentre outras coisas, para a maior instabilidade das suas relações familiares e a erosão das tradicionais redes sociais de apoio: a escola e a igreja.
Em outubro de 2018, a socióloga Arlie Russell Hochschild escreveu para a New York Review of Books sobre a defasagem educacional dos rapazes, levando-os, muitas vezes, a incorrer em desvios comportamentais, e até mesmo crimes ou contravenções. Em dezembro do mesmo ano, os jornalistas Simon Kuper e Emma Jacobs publicaram no Financial Times uma matéria especial sobre a precária situação escolar dos garotos em países desenvolvidos. Denunciam os autores: “Eles são muito piores em leitura, estão menos propensos a frequentar uma universidade, e a liderança masculina na matemática está encolhendo (e tornando-se imperceptível em países como China e Singapura)”.
Sobre como as percepções da masculinidade impactam a vida dos jovens, uma das leituras mais interessantes de 2020 é a do recém-lançado Boys & Sex: Young Men on Hookups, Love, Porn, Consent, and Navigating the New Mas- culinity. Este livro é o resultado de uma pesquisa realizada pela jornalista Peggy Orenstein, que, em um período de dois anos, entrevistou centenas de estudantes do nível médio e universitário.
Orenstein, que fez carreira ao escrever sobre o impacto do feminismo na formação da identidade de meninas e adolescentes, chegou à conclusão de que, enquanto o horizonte de possibilidade das garotas se havia ampliado — graças ao questionamento dos tradicionais conceitos de feminilidade —, um fenômeno inverso estaria se fazendo perceber entre os garotos, para quem o ideal de masculinidade ainda é reflexo do modelo de homem da década de 1950, a incorporar qualidades como: o desapego emocional, a boa aparência e a robustez física, a desenvoltura atlética, o sucesso financeiro, a proeza sexual, bem como a dominância e a agressividade.
Para a autora, assim como as garotas com as quais tivera contato para escrever Girls & Sex: Navigating The Complicated New Language, os rapazes também parecem viver em constante estado de negociação – por um lado, tentam encarnar ideias mais atuais sobre gênero; por outro,
não conseguem abandonar antigas concepções. Orenstein também chama a nossa atenção para o fato de que, assim como no caso das meninas, os aspectos mais insidiosos do tradicional ideal de masculinidade persistiam reforçados pelas equipes desportivas, pela mídia e pela família. 45
Tal observação remete-me, uma vez mais, ao ensaio que escrevi sobre o tema, questionando se a contemporânea crise da masculinidade não seria um reflexo tardio da mesma crise de identidade que afetou as mulheres no surgimento da modernidade – esta caracterizada pelo impacto cada vez maior da ciência, dos processos de industrialização e do advento das novas tecnologias em nossas vidas, desafiando a autoridade da religião na sociedade e desmistificando antigas superstições e preconceitos. Isso gerou uma sensação de vertigem, como se já não soubéssemos mais qual de- veria ser o nosso lugar e função neste mundo, ao exemplo do que escreve o filósofo Friedrich Nietzsche ao discorrer sobre o tema da morte de Deus em A Gaia Ciência:
Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo?
Fragilizada por sua tradicional situação de reprimida, a mulher teria sido a primeira a sofrer com as reviravoltas do paradigma cultural. No entanto, em Stiffed: The Betrayal of The American Man, a escritora feminista Susan Faludi articula a hipótese de que, no século XX, a imagem que os homens faziam de si foi invariavelmente abalada pelas mudanças do antigo modelo econômico de produção para o de prestação de serviços – quando boa parte dos homens que antes se ocupavam de trabalhos pesados ou que não conseguiram se adaptar ao novo paradigma tornou-se mais vulnerável a demonstrações de ressentimento ante o sucesso de grupos anteriormente considerados submissos ou à margem da sociedade. Cumpre, assim, perquirir do futuro.