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Juliana Linhares e seu Nordeste Ficção

O Nordeste chega para ser realidade, desta vez na voz de Juliana Linhares. Mais conhecida como vocalista do grupo Pietá, a cantora estreia o seu primeiro álbum solo, Nordeste Ficção. Além de carregar a originalidade característica de Juliana, o projeto autoral busca resgatar as raízes de um nordeste afetivo, desapegado de estereótipos. Na conversa a seguir, Juliana nos conta a experiência de lançar o primeiro álbum, as suas principais influências e a sensação de trabalhar com nomes como Zeca Baleiro, Tom Zé e Chico César.

Mesmo tendo uma trajetória musical como vocalista da banda Pietá, como tem sido a experiência de encarar a estreia de Nordeste Ficção, o seu primeiro álbum solo?

Um disco solo é um aprendizado diferente. Já fiz alguns discos e, ao mesmo tempo que tem um lado que é rico, da troca, de não fazer as coisas sozinho, tem também o lado de você às vezes passar por cima de um desejo seu pelo coletivo. No disco solo, eu tentei ouvir muito os meus desejos e o que eu queria. Sempre fui uma pessoa muito da ideia do colaborativo, do trabalhar em conjunto, e eu não deixo isso de lado, mas eu quis muito olhar para mim, para a força que estava gritando aqui dentro, como eu me potencializo como artista através da minha voz e da minha música. Eu queria que isso fosse fluido, que me sentisse firme nas coisas que eu estava escolhendo. Então eu acho que está sendo muito interessante, porque você se conhece muito depois que o disco sai. E é muito rico o retorno, porque você não sabe muito bem quem você é quando o disco é lançado. Você vê que uma música ou outra é boa, mas não sabe muito bem como o todo vai soar. A escolha de realmente lançar um álbum inteiro traz isso, do olhar para a dramaturgia, para a obra, para uma história que você conta sem saber como vai chegar. E está sendo muito interessante ver minha história e minha trajetória chegando nas pessoas, sendo ouvida, compreendida e questionada.

A parceria com Zeca Baleiro resultou no single Meu amor afinal de contas, uma composição intensa, tomada por uma atmosfera lírica e teatral. Como essa música antecipa e dialoga com o álbum?

Eu acho que essa música antecipa o álbum, trazendo um compositor e artista nordestino que agregou à música brasileira uma obra que quebrava, e quebra, estereótipos da música tradicional nordestina. Então era uma coisa que eu queria. E a gente apostou numa composição que fosse mais densa, mais lírica mesmo, mais orquestral. Tem uns arranjos de cordas. Eu queria quebrar uma expectativa, também, de abrir um disco com uma música que já remete diretamente a uma imagem de um Nordeste que é mais estereotipado. Além, claro, de querer contar com o Zeca, que é um cara que tem um grande público e poder de abrir caminhos para o disco. Tudo isso ao mesmo tempo. O clipe, da mesma forma, veio nesse desejo de trazer um roteiro poético que construísse imagens diferentes das tradicionais remetidas pela ideia de Nordeste.

Tom Zé, Chico César e Carlos Posada também estão presentes no álbum. Como essas parcerias foram pensadas e aconteceram?

O Pousada é uma pessoa por quem eu tenho uma admiração muito grande há muitos anos. Ele foi uma das primeiras pessoas que eu busquei. Em 2019, eu estava numa crise de garganta, perdi a voz, no meio da gravação do disco de Iara Ira, e mandei uma mensagem para o Pousada dizendo, “preciso fazer meu disco, preciso de um ponto de partida, estou querendo ouvir canções, você tem alguma coisa?” E ele me mandou umas canções e, entre elas, estava “Bombinha”, que é a música que abre o disco, não à toa. Foi a música que realmente abriu meu desejo com mais segurança, sabe? “Bombinha” foi a primeira música que eu escolhi desse repertório todo. Quando eu ouvi, eu disse “é isso”. É isso que eu quero cantar. E ela me deu um futuro. O Tom Zé veio através do Marcus Preto, que é diretor artístico do disco. Quando a gente conversou, ele teve a sensibilidade de sugerir, a partir da minha vivência na música e como atriz, uma canção. Ele falou: “Juliana, lembrei de uma coisa. A gente encontrou no rolo de fita do Tom Zé de 1972 essa música”. Quando eles fizeram um disco juntos, acho que foi o Vira Lata na Via Láctea, ele falou que o Tom Zé não curtiu a letra da música e preferiu mudá-la. E o Marcus chegou para mim com a letra original e falou: “eu acho que você devia gravar essa”. Eu ouvi e falei “caramba, que curioso, interessante isso, bate, gosto”. E o Tom Zé, para mim, era um símbolo tropicalista muito rico para essa desconstrução do estereótipo nordestino também. E aí eu juntei tudo. O Chico César é um cara que eu amo, admiro muito. Escutei Chico minha vida inteira. Meus pais, meu irmão, todo mundo que conheço é fã dele, sabe? E eu tive a oportunidade de fazer um espetáculo como alternante da Laila Garin em A Hora da Estrela, que estava em cartaz aqui no Rio, e o Chico fez a trilha toda da peça, inédita. Assim fui me aproximando dele, acompanhando mais de perto. O Chico já participou de músicas do Pietá também, então é uma pessoa que me inspira politicamente, poeticamente e no ofício da composição. Eu acompanhei o Chico durante a pandemia, e ele quase todos os dias postava um vídeo com música nova. E eu achei aquilo genial. Pensei “cara, vou escrever para ele, já que ele faz uma música por dia, quem sabe ele joga duas aí para mim, com as minhas letras?” E rolou. Foi muito legal.

Quais as principais influências que você levou durante a produção de Nordeste Ficção?

Eu acho que a música nordestina – digamos assim, quebrando esse estereótipo mas se utilizando dele – dos anos 70, Amelinha, Belchior, muito Alceu Valença, Elba e Zé Ramalho, Ednardo. Desde uma coisa mais Geraldo Azevedo, “Talismã”, mais mística, mais moura, até “Frevo Mulher”, da Amelinha, que eu queria no Nordeste Ficção, na música-tema. Então essas são as referências principais do disco. Abrindo para outras possibilidades, essas são referências que quando ouvia queria me transportar pra esse lugar. Queria lembrar disso em mim, desse fazer de Nordeste rock’n’roll, Nordeste quente.

“Eu gostaria de trazer um Nordeste cada vez mais amplo na cabeça das pessoas”

O que podemos esperar do novo álbum e como ele retrata Juliana Linhares em sua versão solo?

Eu acho que o disco é um convite a um diálogo sobre a invenção do Nordeste. Era o que eu queria, que o disco abrisse uma fresta, uma porta, para a gente conversar. Não que ele resolvesse alguma questão. Eu não me proponho a isso. Mas eu queria que o disco fosse uma brasa, sabe? Para a gente assoprar a fogueira dessa discussão sobre a invenção do Nordeste, para que as pessoas hoje possam, cada vez mais, olhar o Nordeste como um lugar múltiplo, rico, profundo, menos superficial e estereotipado, como a gente vê ainda hoje se repetir nas discussões, no imaginário. O nordestino ainda é visto de uma forma muito estereotipada, e às vezes muito inferior, e ainda submissa. Então eu queria que o disco fortalecesse a discussão sobre a pluralidade e a quebra desse estereótipo, lembrando que a região é uma invenção e, se ela é uma invenção, ela não existe. Mas ao mesmo tempo existe, não de uma criação natural, não fruto da natureza, e sim de uma escolha geopolítica mesmo. Fronteiras são escolhas políticas da humanidade, assim como os preconceitos. E eu queria que o disco abrisse um pouquinho essa luz na cabeça de quem fosse ouvindo, de quem fosse vendo a capa, “caramba, vamos ouvir, vamos pensar um pouquinho”. Eu gostaria de trazer um Nordeste cada vez mais amplo na cabeça das pessoas. E eu, como versão solo, estou ainda descobrindo. No meio dessa pandemia, tudo que eu queria era poder fazer show com o disco. Não vejo a hora de poder me colocar à disposição do público mesmo, da troca, do calor. Quero poder potencializar essa discussão a partir da minha presença, ao longo da minha trajetória solo. Essa discussão do Nordeste ficção, “Nordeste nunca houve”, como disse o Belchior.