A verdade das máscaras e a ilusão da vida
Sempre soube que atores e cantores compartilhavam segredos e afinidades. Assim, quando descobri que o lendário Stanislavski, ao reduzir suas atividades ao máximo em razão de grave enfermidade, manteve apenas dois empregos – um com atores e outro com cantores –, senti-me antes feliz por confirmar uma intuição do que realmente surpreso. Por essa razão, começarei falando de atuação para, em seguida, passar à canção.
Um ator, quando deseja viver de fato a existência de um personagem que ele representa, precisa convencer sua mente, seu cérebro e seu corpo de que aquela situação imaginária é real. Isso que, colocado dessa maneira, parece simples, é um dos desafios mais complexos do mundo das artes, pois significa dizer que um ser humano que tem toda uma vida pregressa (infância, memórias, sentidos, experiências, relações, traumas, conquistas) será capaz de substituí-la por outra vida que nunca viveu (aquela que foi inventada pelo autor de uma peça ou roteirista de um filme para um personagem). Assim, do mesmo modo que um bailarino se capacita para dançar um balé criado por um coreógrafo e um músico desenvolve habilidades múltiplas para, com seu instrumento, transformar em som vibrante uma partitura morta, o ator que se propõe a construir um personagem em si mesmo e dar vida a esse alguém que só existe, em estado de latência, na superfície de um papel, precisa desenvolver um manancial de recursos técnicos que permitam a ele operar esse milagre artístico. Tal milagre consiste em deixar alguém existir fora da mente, para além das palavras adormecidas na folha branca, alguém que possui largura, corpo, volume densidade, cheiro e cor.
Esse trabalho artístico, é bom que se diga, não equivale, em nenhuma hipótese, a enlouquecer ou alucinar. Não terei tempo aqui para expor as diferenças entre o artista e o louco, mas considero uma ofensa a ambos a confusão entre uma vocação profissional e pessoal (inscrita na esfera do trabalho e do desenvolvimento afetivo-intelectual) e as condições mentais e patológicas que, na maior parte das vezes, trazem uma ruptura com as relações afetivas e a realidade, causando dor, alheamento e sofrimento psíquico indescritível para aqueles que as atravessam. O artista pode sofrer de transtornos mentais, assim como alguém pode estar mentalmente adoecido sem professar arte alguma, mas esse tipo de atuação à qual me refiro – cujo grande pioneiro e maior arregimentador de ideias foi Constantin Stanislavski – situa-se na esfera do trabalho artístico e pode ser resumida na seguinte frase de Sanford Meisner, um de seus muitos discípulos: “Atuar é a habilidade de viver verdadeiramente sob circunstâncias imaginárias”.
Aqui começa minha proposição sobre canção, que em tudo está ligada à atuação e ao título deste artigo: o cantor-intérprete, cujo “eu-pessoal” deseja experimentar a vida do “eu-personagem da canção”, é um cantor stanislavskiano, ainda que não tenha consciência. Ao vivenciar como se fosse seu o sofrimento ou a alegria de um outro ser, no aqui-agora, o cantor se aproxima do ator realista, ou seja, ele se propõe a ocupar seu próprio rosto com a máscara de outrem (do personagem criado pelo compositor), dando a esse outro uma existência que se funde à sua, por meio de um processo complexo que, na área da atuação, chama-se “construção de personagem”. Quando Elis Regina, em sua antológica versão de “Atrás da Porta”, debulha-se em lágrimas ao entoar o drama e os conflitos vivenciados pela mulher retratada na letra de Chico Buarque, é óbvio que ela não está representando mecanicamente uma ideia alheia e generalizada de sofrimento. Ao experienciar a dor profunda da personagem, a intérprete está, tal qual um ator realista, entrando em fase com a estrutura do conflito – no caso específico, o tormento da separação, do abandono e da solidão – a partir de suas próprias experiências pessoais. Elis é capaz de sentir, “em tempo real”, uma dor que não é sua, ao menos naquele momento, porque consegue vivenciar em seus afetos as circunstâncias que lhe foram dadas pelo autor da música. Desse modo, seu corpo, sua psique e sua voz são envolvidas por condições afetivas que, naquele exato instante, não estão ocorrendo. Isso é a verdade absoluta da ilusão, a fé cênica cujo apelido é máscara.
A verdade da máscara, por sua vez, contrapõe-se à ilusão da vida. O teatro do real, da vida real (que não se confunde com o teatro realista), nada mais é do que a encenação socialmente endossada de circunstâncias dadas por um ator desconhecido (ou por múltiplos atores invisíveis). Se a filha de fulano é aprovada em um concurso para a magistratura, ou se beltrana é eleita deputada, ou se sicrano é vencedor do Big Brother Brasil, ninguém questiona o quão irreal é esse jogo de máscaras. Todavia, tanto a juíza quanto a deputada e o vencedor do Big Brother são ilusões enunciativas de uma sociedade que pode desfazê-las a qualquer tempo, desde que um processo histórico se constitua como tal. A essa instável ilusão, costumamos dar o nome de realidade. Porém, basta que uma desventura histórica permita a um capitão de fragata qualquer romper a ordem democrática e o juiz será destituído, o cargo de deputado extinto e os personagens lançados em outros papéis (quanto ao Big Brother, salvo raras exceções, o próprio tempo se encarregará de destituí-lo). Por isso, para quem deseja realmente entender sobre a verdade, o primeiro critério é saber que ela é absoluta na medida das construções sociais, mas nem por isso é mentira; verdades são entes concretos que operam em nossas vidas até que sejam substituídas por outras mais efetivas.
Neste trecho de meu artigo, faz-se necessário um pequeno aparte para tratar da expressão “ilusão enunciativa”, que foi retirada do artigo de Luiz Tatit, a “Ilusão enunciativa na canção”. Ilusão enunciativa é um termo brilhante (e cauto) do igualmente brilhante (e cauto) Luiz Tatit – cancionista, compositor e linguista –, utilizado para descrever o processo que, segundo ele, faz com que o ouvinte de canção tenha sempre “a sensação de que os sentimentos descritos nos versos são vivenciados aqui e agora pelo cantor”. Tatit afirma que o canto tem o poder de transformar o “ele” em “eu”, ou seja, o personagem da canção se transforma na figura do próprio cantor, e segue dizendo que “a expressão direta do ‘eu’ na letra de uma canção (…) produz no ouvinte a ilusão de que o intérprete fala de si como ser humano”. Mas Tatit vai além. Ele propõe que, mesmo quando a letra está em terceira pessoa, as modulações da voz e a própria melodia se encarregam de aproximar o cantor do personagem da canção: “Lembremos da canção Domingo no Parque (Gilberto Gil), cuja intensa expressão melódica do intérprete (eu) elimina qualquer possibilidade de isenção enunciativa, ainda que a letra se construa em terceira pessoa e tente se ater aos fatos e à descrição dos sentimentos que geraram a crise entre ‘João’, ‘José’ e ‘Juliana’. Não se pode negar que o aumento progressivo da tensão emocional que afeta o personagem ‘José’ (ele) se manifesta claramente nos contornos melódicos realizados pelo eu-cantor”. E, para que restem comprovadas suas proposições, ele afirma ainda o seguinte: “Os sentimentos atribuídos a ‘ele’ (o personagem da canção) são infletidos pelas modulações vocais do intérprete, portanto, do ‘eu’ (o cantor). Tudo que a letra desconecta da enunciação, a melodia se encarrega de reconectar.
Essa digressão sobre o artigo de Tatit, longe de ser gratuita, é pedra fundamental para o entendimento do que estou a discorrer: a ilusão enunciativa é um conjunto maior dentro do qual o cantor-ator-realista é um subconjunto. O intérprete que vivencia a experiência do personagem como se fosse sua, no aqui-agora, é, para pegar um termo emprestado da biologia, a espécie dentro do gênero. Minha proposição deixa entrever o seguinte: há muitas maneiras de se aproximar do material cancionístico; uma delas assemelha-se ao modo como o ator realista stanislavskiano lida com seu material. Eu, particularmente, adoro esse tipo de interpretação. Amo a catarse e o aprendizado sobre a vida que tiro da observação ativa de uma existência se abrindo à minha frente. Mas, por outro lado, também venero cantores cuja experiência artística é proposta sobre outras relações com o material – por exemplo, a sensualidade somática e rítmica da letra, em que o vigor das sílabas e os ataques às notas ganham proeminência sobre a narrativa. Refiro-me aos cantores dos fluxos somáticos, corporais, aqueles em que a musicalidade das palavras e da melodia são vivenciadas com uma importância cem vezes maior do que um suposto sentido da letra. João Bosco, Marvin Gaye, João Gilberto, Mayra Andrade, Fatoumata Diawara, entre muitos outros, são cantores capazes de construir narrativas sensoriais para além do sentido literal das frases e sentenças, levando-nos a uma outra modalidade de fruição artística, que passa pela potência dos timbres, dos sons, das articulações vocais que moram numa outra dimensão da palavra. Eles também usam máscaras, mas, em muitas canções, trata-se de uma máscara sonora que em tudo se difere da máscara-personagem.
Finalmente, a respeito da máscara, vale dizer que a verdade do cantor que se coloca no lugar do personagem da canção é referendada por um item apenas: a fé cênica. A fé cênica, por sua vez, não reside na consciência ou no intelecto do cantor, mas em seu corpo, em seu comportamento, nas respostas motoras e sensoriais que são acionadas pelo intérprete no momento exato em que ele se sente fundido, transfundido e confundido com o eu-personagem da canção. É somente a partir dessa simbiose física, mental e espiritual que o artista sangra e sua, chora e ri, toca e sente os conflitos da personagem como se fossem os seus e, o que é mais importante, age e reage a estímulos que nascem de seu inconsciente, dando vazão a impulsos tão surpreendentes que podem espantar tanto quem ouve quanto o próprio intérprete. Essa capacidade de alguns cantores de entrar em conjunção com o “eu da canção” parece-me muito semelhante à do ator stanislavskiano no seu processo de construção de personagem. Para além da ilusão enunciativa, brilhantemente proposta por Tatit, interessa-me conhecer melhor os procedimentos utilizados por intérpretes relevantes da música brasileira, cuja formação teatral, na maioria das vezes, é inexistente, para convencer sua psique de que ele (cantor) e o “eu da canção” (personagem) são um só.
Já ouvi, por diversas vezes, fofocas, anedotários, relatos impublicáveis de estratégias utilizadas por cantores e cantoras para gravar suas canções com esse elã de verdade. Durante muito tempo, deixei-as, por pura ignorância, no terreno do exotismo. Hoje compreendo que o que há ali é a construção intuitiva de uma técnica, de um experimento, de um processo que, se não for pesquisado, permanecerá eternamente no terreno mágico do segredo. A verdade das máscaras é tão real (e fascinante) quanto a ilusão da vida.