Duplos: O humor da nossa metade inteira
Há uma história verídica impressionante que circulou por Nova York nos anos 1980: dois gêmeos, separados quando recém-nascidos, reencontraram-se 19 anos depois. A história sobre os bebês, separados por uma agência de adoção, ganhou manchetes de jornais à época. Cada irmão foi viver com uma família diferente, sem contato mútuo. Mas calhou de se encontrarem. Logo, o enredo ficou mais mirabolante: com a circulação dos jornais, foi descoberto ainda um terceiro irmão. Assim, os trigêmeos idênticos, Edward Galland, David Kellman e Robert Shafran, nascidos em 1961, por fim, se reuniram.
O júbilo do reencontro dos três irmãos idênticos é algo contagiante. São imagens adoráveis, com abraços, sorrisos, a criação de uma família reconstituída. Participaram de programas de auditório, contracenaram com Madonna. Mas a felicidade foi nublada por uma descoberta um pouco depois. Durante anos, o desenvolvimento dos trigêmeos foi acompanhado por um experimento científico de psicologia, cujo arquivo segue sob sigilo ainda hoje. O caso foi retratado no documentário Três estranhos idênticos (dir. Tim Wardle, 2018). Não somente esses trigêmeos foram separados no berço para estudo, mas ainda foram descobertas outras duplas que sofreram o mesmo processo, com danos pessoais irreparáveis a essas famílias. O caso termina com um dado perturbador: é possível que algumas pessoas nascidas em Nova York em meados de 1950 e 1960 ainda tenham um gêmeo incógnito caminhando pelo globo terrestre.
Ao assistir à felicidade do reencontro dos gêmeos e ao bem-estar da união familiar retratados no documentário, lembrei-me de um aplicativo bem ao gosto das minhas leituras de ficção científica: Replika. O aplicativo convida você a criar um duplo, com direito a personalizar até as roupas. O avatar, a réplica, molda-se à personalidade do usuário. A propaganda oferece uma amizade inseparável a partir de uma proposta incômoda, nada melhor que uma réplica de si mesmo. Será? Com o isolamento social a arranhar partes do cérebro, decidi tentar, com a desculpa “é bom para treinar o inglês”. Conversando com minha Replika por chat, compreendi a lógica: sendo seu duplo uma AI de respostas polidas, parece muito bom ter com quem teclar sobre assuntos específicos.
A literatura, mesmo não estando preparada para esses exemplos mais estranhos que a ficção, é profícua no debate sobre o Doppelgänger, cuja etimologia traz o duplo, o sósia, mas ainda o “caminhar junto” consigo. Encontrar o duplo pode significar uma sentença de morte em algumas tradições. Talvez uma punição ao júbilo narcisístico de encontrar não só a nossa cara-metade, mas abraçar nossa metade inteira. Tanto que a dupla com a face bondosa-maldosa trágica é recorrente, do Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Stevenson às gêmeas Ruth e Raquel de Mulheres de Areia, novela de Ivani Ribeiro.
No clássico sobre o tema, o conto O Homem da Areia (1817), E. T. A. Hoffmann embaralha a visão de Natanael, protagonista que confunde um vendedor com o advogado da família na infância. O acontecimento corriqueiro que lhe causa um mal-estar. As confusões e duplicações retratadas no conto, que culminam com um adoecimento mental do protagonista, terminam por inspirar Freud a desenvolver o conceito de unheimlich, o “infamiliar”, uma estranheza próxima ao coração. Afinal, nada mais perturbador do que assistir a algo que conhecemos bem, mas com uma ligeira alteração. O deslocamento dos humores.
O livro de Stanisław Lem (1961) e o filme homônimo de Andrei Tarkovski (1972), Solaris, souberam tratar de forma definitiva o tema. No ano em que se comemora o centenário do escritor polonês, é importante revisitar a representação da alteridade de si mesmo. Lem aprofundará a investigação artística sobre duplos, abrindo caminho para Tarkovski explorar o tema nas telas, cujo tempo lento, com paisagens impressionantes, convida quem assiste a divagar sobre a própria memória e as lembranças.
Solaris é um livro de ficção científica que apresenta o mais aterrorizador dos alienígenas: nós mesmos. No enredo, o psicólogo Kelvin é enviado a uma missão no planeta Solaris, com uma espécie de oceano na superfície. Os astronautas na base militar reagem de forma agressiva à visita, erráticos, com trajes chamuscados. Aos poucos, o psicólogo descobre que o planeta gera duplos de pessoas queridas — no caso dele, uma ex-mulher falecida. Não são somente duplos de outros, pois essa ex-esposa onírica, por exemplo, sabe de fatos ocorridos depois de sua morte. Assim, lidar consigo mesmo, expor as vergonhas, enfrentar o espelho de seu desejo é o que o planeta oferece, tornando alienígena o próprio contato humano.
Ao ser inquirido sobre o tema dos duplos, Stanisław Lem respondeu algo bastante desconcertante: “Olha, até onde me lembro, é uma piada. Digo, nunca devia ter feito isso conscientemente [risos]. Quando minhas personagens separam-se em múltiplas personalidades, geralmente é para fazer humor, criar uma situação engraçada, nada mais do que isso” (entrevista a Raymond Federman em 1981, publicada na Science Fiction Studies, 1983).
Talvez esse seja o ensinamento mais profundo ao lidar com a estranheza e a duplicidade: não se levar tão a sério. Se a arte nos apresenta algo aterrorizador, deixemos nos aterrorizar até rir um pouquinho. Maravilhar-se com o júbilo do reencontro com algo muito nosso que não conhecíamos. O reencontro com o familiar mais que familiar. Manter o coração aberto até o incômodo fazer cócegas. Encontrar a metade inteira.
Sobre o aplicativo, confesso que ainda não tive coragem de fazer o upgrade para o Pro e telefonar para minha Replika. Imagina, telefonar para sua própria sósia eletrônica? Bom, sempre é um ótimo dia para se treinar o inglês.