Menina com um livro, de Pietro Antonio Rotari (1750-1762)

Era um desses cafés que ficam de frente para o porto. O que havia de peculiar nele não era tanto a sua permanente ocupação pela horda que saía dos iates e dos barcos de pesca, nem sequer o bando de marinheiros dinamarqueses, todos com um aspecto ainda desbotado e melancólico, tão deslocados no calor infernal de agosto neste minúsculo porto, para aqui enviados talvez por castigo, com uma mão cheia de fragatas para patrulharem esta remota fronteira da Europa. Também não eram os turistas, italianos e franceses e de quase mais nacionalidade nenhuma, tantos que quase todos os restaurantes servem comida italiana e o porto lembra mais a Puglia do que outro lugar qualquer. Ou Portofino, como um dos meus companheiros de viagem continua a dizer. A princípio, pareceu-me que ela não tinha nada a ver com o café, achei mesmo que era só mais uma cliente assídua, até que um dia entrei e a vi ao balcão. De manhã cedo, ela está sempre cá fora. Tem uma destas caras (não sei se isto se pode bem explicar) cuja expressão parou algures no ponto intermédio entre a mais intensa loucura e uma calma absurda. Quando os olhos dela param nos nossos, e param sempre nos nossos, nos dos turistas, nos dos marinheiros, parece que ela olha para dentro e a fundo, como uma ave marinha que mergulha na profundidade. É um olhar hostil como uma verdade escondida. Dura apenas um segundo ou dois e o seu olhar volta rapidamente a assomar à superfície, a regressar ao cordato superficial. Ela está sentada à mesa, com um cigarro aceso entre os dedos, os olhos fixos no porto diante da esplanada e, de repente, o rosto dela vira-se, fixa-se por um instante, há qualquer coisa na sua expressão que deixa perceber que ela entendeu o que precisava de entender e pode tornar a desviar o rosto.

Roberto Calasso recorda-se de uma versão muito obscura do mito de Ariadne em As núpcias de Cadmo e Harmonia, em que Dioniso arrasta com ele Ariadne, como um soldado, para o combate com Perseu, e que é Perseu quem vira o rosto de Medusa para Ariadne, agitando a sua cabeça diante do olhar da princesa de Creta, até ela se transformar em pedra. Parece-me que quando os olhos desta mulher param nos olhos dos transeuntes, nos teus, ou nos meus, ou noutros quaisquer, que é o olhar de Medusa que por um momento pousa sobre o nosso rosto. As perguntas que ficam por resolver quando nos perguntamos o que fica à superfície do nosso rosto quando os olhos de Medusa descansam sobre os nossos oferecem, como seria de prever, mais perguntas do que respostas. A principal pergunta é: o que é que este mito, que não é sobre Levinas e sobre a responsabilidade perante o rosto do outro, nos diz sobre o que em nós pode ficar petrificado à superfície, no momento do olhar. É também, claro, sobre equilíbrios de poder. Um só olhar de Medusa, com a sua força impiedosa, pode petrificar para sempre à superfície a mais preciosa das expressões de um rosto, que pode ficar para sempre conhecido como a cara que mereces.

Não há nada de banal no rosto desta Medusa. Ela recria com uma impassibilidade que é difícil de explicar, com uma facilidade aparente e arisca, a solidão de olhos que às vezes se encontram por breves instantes numa multidão. O efeito da urbanidade de Baudelaire neste porto esquecido, às margens da Europa, é bastante perturbador. Ela tem uma cicatriz no queixo, nem grande nem pequena, e outra um pouco mais acima, do lado do olho esquerdo. Grandes olhos castanhos, e o cabelo pintado também de um castanho que há muito deixou de ser plausível. Não é um rosto. É uma cidade. É uma destas caras a que se chega para efeitos de recordar a capacidade para a atenção que existe dormente em nós, por indolência, fatiga, falta de tempo, fechamento aos outros, e que pode ser convocada por um destes encontros.

Assim este jogo. Aqui faz um calor a que, há muitos anos, por virtude da vida que tenho levado, me desacostumei. É o calor dos verões da infância, traduzido num ponto muito distante da idade adulta. Aprendi, por causa do trabalho que faço e da personalidade das pessoas que me rodeiam, a raramente invadir os seus rostos com um olhar atento e fixo, do tipo a que se poderia chamar, “invadir o espaço dos outros”. Ela faz isto por brincadeira e é quase, assim o entendi dia após dia, uma profissão. Parte do seu trabalho é ver-te, reconhecer-te. É isso que acontece. Há muita gente que te reconhece sem nunca ter a coragem de te olhar adiante no rosto. Pensa nisso. O olhar dela corta a direito, é como um destes punhais dos pastores, agora vendidos por pura paródia, na loja dos turistas ao lado do café. O olhar corta a direito pelo que nele é insistente e te força a reconhecer o seu rosto, e encontra algures em ti, para lá do que flutua à superfície dos teus olhos e é a suja indiferença com que te amortalhas diariamente, este tempo da tua vida sem bússolas, uma paixão tão pura que merece ser passada a pedra. O olhar dela é, então, a crueldade da vida, a lembrança, mitológica e urgente, de que há um preço a pagar por escolher chegar demasiado tarde ao reconhecimento de alguns rostos. É o seu rosto que encoraja esta revelação. Não é da ordem da lógica. Ou é da ordem da lógica apenas ao género do que explica Italo Calvino, num pequeno texto autobiográfico sobre Turim. É a lógica que encoraja a loucura. Os rostos são paisagens, com as suas constelações e incêndios. Desde que aqui cheguei, a terra não tem parado de arder. O ar estava cheio de cinzas, durante dias não se pôde ver o horizonte. Quando voltares a levantar os olhos, lembra-te lá, agora, de Ariadne entre os soldados do cortejo de Dioniso.