Garota com gato, de Lucian Freud (1947)

Imagine que uma mulher precisasse gozar para que qualquer fecundação acontecesse. Ou, já que o gozo está para lá de uma identificação restrita ao ato ejaculatório, imaginemos que essa mulher, para que pudesse gerar uma vida, tivesse que ser mais do que um ”vaso”, como muitas vezes seu gênero foi pensado, por séculos de misoginia religiosa, e não só. Suponhamos que ela precisasse se mexer e ser autora do ritmo que, num coito, digamos, heterossexual, conduzisse a transa a uma potencialidade fecundante. Que ela, a seu modo, ejaculasse, liberando qualquer substância vital sem a qual o vivo não existiria. Qual seria, então, o tamanho populacional do mundo? Pela trigésima metade? Você saberia dizer se é filho ou filha do gozo de sua mãe? 

Imagine então que, assim sendo, rasurando a vergonha imposta a Eva, reconhecêssemos que a maçã se come inteira, e fosse respeitada a autoria feminina de seu próprio gozo. Para além da mordida única, já culposa, da primeira mulher que, segundo a Bíblia, leva o homem (e Deus) a condená-la de antemão como veículo do pecado e, portanto, do mal, como poderia ter sido a relação vital entre corpo feminino, prazer e continuidade da espécie se essas coisas dependessem umas das outras? Se o corpo da mulher só concebesse através do prazer (e podemos incluir, nessa palavra, toda gama de autonomia e singularidade de um corpo, para além do binarismo de gênero que não faz mais qualquer sentido, nem reprodutivo), talvez o rosto da bruxa, a que olho agora e já há tempo, não existisse. Mas ele existe. 

Este rosto faria sentido, pergunto, se testemunhasse uma história que honrasse (e precisasse de) seu autoconhecimento? Como formular a equação sobre o lugar e a subjetividade do gênero masculino se, como estamos supondo, este soubesse que a espécie humana depende do prazer da mulher? Que homem seria esse? Antes de Eva, o rosto da bruxa já se desenhava, por exemplo, em Medeia, posta na fogueira pagã por ameaçar o imaginário solar heroico e viril de meninos gregos que cultuavam o poder de impunidade de seu sexo. No rosto da bruxa sobreposto ao de Medeia, é possível ler a violência pré-cristã – e, nesse exemplo, a fundura misógina do mundo há muitas e muitas culturas – já usada como instrumento colonizador: Medeia era, nas variáveis próprias do mito, uma estrangeira, com poder políticos. E não só: feiticeira, era neta do Sol, de uma linhagem cuja legitimação era inquestionável em seu território cultural. Seu mito encena uma antiga disputa que marca a passagem das culturas das chamadas “grandes mães” para aquelas cujo elemento dominante é o herói, masculino e civilizador. Sabemos bem quais as consequências desse trajeto colonial: a escassez e o cansaço não só de mulheres, mas de todas as pessoas estranhas ao estereótipo do macho inconsequente, incluindo aí a própria terra enquanto recurso esgotável. 

As três grandes religiões monoteístas se organizaram a partir dessa orientação moral, e as três reproduziram suas leis tendo como chão a opressão, em graus diversos, do corpo da mulher. Na contaminação cristã, o corpo da mulher (e a mulher como um todo, visto que uma corporeidade negativa a configura) carrega a senha do diabo, do mal. Neste sentido, paira sobre o rosto de toda mulher o rosto da bruxa, quer ela queira ou não. Há no rosto da bruxa um tino erradio. Um dom de dolo, um poder que escapa ao retrato – dizem. Se ela é bonita, conforme foi pregado na testa de cada cultura o senso estético da beleza, ela não pode ser muito bonita, ou excessivamente senhora do considerar-se bela. A mulher, portanto, vejam só, tinha/tem duas impossibilidades: não pode ser bonita e não pode ser feia. Entre ambos, espera-se que se comporte como um bom e agradável vaso que, em sua neutralidade, não tenha prazer, apenas cumpra sua utilidade (instinto, dizem, naturalizando-a) doméstico-reprodutiva. 

Em partes da cultura moderna europeia, a iconografia da bruxa evidencia-se: ela consegue congregar em seu imaginário os restos eróticos da mulher sob a tutela de Vênus/Afrodite – cuja filha cristã e decadente, Eva, será responsável por conduzir o casal heteronormativo, recém-nascido, à expulsão do paraíso – e a figura residual e sem lugar da mulher que sobrevive à sua idade fértil, vulgo a velha, aquela sem serventia, a não ser ao cumprimento de papeis de uma invisibilidade alargada à invisibilidade exigida da mulher, parte e posse da visibilidade (poder) de algum homem. Entenda-se: da mulher, é-lhe exigida a beleza, mas uma beleza que sinalize seu esforço em obedecer e servir, uma espécie de carência, melancolia, roubo da potência, enfim, uma beleza da qual ela seja objeto e não sujeito.

Se à mulher é exigida a máscara de uma beleza calma, a beleza do bem (o belo de obedecer), um olhar submisso e amoroso das Madonas, das virgens, ou a graça convidativa de uma Afrodite Urânia, versão idealizada e abstrata de uma vênus incorpórea, a beleza do rosto da bruxa é necessariamente feia. Nela reside um proliferado ninho de ratos e animais venenosos, crianças mortas, excrementos, sangue menstrual, embriaguez, desejo. Sua beleza, desobediente (a beleza de sua desobediência) – dizem os doutos –, é a arma mais sutil do demônio. E quantos homens não a assassinaram, em legítima defesa? No Brasil pandêmico, a cada 6 horas e meia, um homem se vê autorizado a defender-se matando uma mulher. Pesquise sua ancestralidade, assentada sobre o silêncio dos bons tons burgueses. Quantas vezes o rosto da bruxa foi rasurado, derretido, adulterado, com a cumplicidade do código “família” – você saberia dizer? 

Olho bem no meio deste rosto de mulher. Acho bom que ele exista. É um rosto que mostra os dentes. Na história da pintura, são retratados mostrando os dentes aqueles taxados como anormais, os loucos, os pecadores. De quem é este rosto cuja boca aberta, rindo, devora, goza, ou – por que não? – fala? O rosto da bruxa. Que bom que ele existe! A cultura medieval oficial, a da Igreja e dos eruditos, diz-nos Bakhtin, era chamada de agelastoi, ou seja, composta por gente que nunca ria ou odiava o riso. Gesto profano por excelência, o riso foi entendido como parte do diabo. Se a máscara da mulher foi talhada sob o signo do silencio, o rosto da bruxa inteiro fala, grita, vocifera seu desejo e gargalha. Sabemos, com inúmeras pesquisas historiográficas, entre elas a precursora de Margaret Murray (The Witch-Cult in Western Europe, 1921) ou, mais recentemente, a do fantástico Carlo Ginzburg (Ecstasies: Deciphering the Witches’ Sabbath, 1991), que a “confecção” da figura da bruxa e de seus encontros noturnos – os detalhes do sabá – tem como origem a expiação de cultos agrários de fertilidade, de culturas ainda vinculadas a religiosidades pagãs. A mulher, portanto, que ousasse saber sobre seu corpo – sexualidade e fertilidade desobedientes – era aquela cujo riso demoníaco selaria e nomearia o rosto, de bruxa. Imagem que começa a circular, com maior vigor, no contexto mesmo da institucionalização de sua caça, a caça às bruxas.  

Contrariando a “erótica da imagem” que, no caso da bruxa, funciona às avessas – atraindo olhares para aquilo que se deve repelir, violar, condenar e matar –, olho hoje mais do que ontem, e concentrada, o rosto da bruxa. Aprendo com ele as rugas do riso, que ninguém tem o direito de me roubar, bem como o direito de fazer o que bem entender com qualquer capacidade reprodutiva de meu corpo, que não existe para cumprir qualquer instinto materno, qualquer zelo narcísico projetado sobre ele. No rosto da bruxa, finalmente, não vejo um vaso. Vejo uma goela afiada e escuto sua voz própria, pela qual ela já morreu e ainda morre. É este o rosto que chamo ao meu rosto quando escrevo. É com ele que testemunho a violência, que recuso a perda da memória. Ele, de boca aberta, sujeito inegociável de minha fúria, de meu ritmo e de meu gozo. Eles existem.