#40DemoliçãoArteEditorial

Editora convidada: Sofia Borges

Nesta carta editorial, escolhi compartilhar a transcrição de uma conversa gravada no meu ateliê com a curadora Paula Borghi, porque sabia quanto ela poderia colaborar com a edição desta revista e o seu tema: demolição. Demolir, que é verbo defectivo: não é conjugado em todos os tempos e pessoas verbais. No presente do indicativo, não é conjugado na primeira pessoa do singular (eu). No imperativo afirmativo, é conjugado apenas no tu e no vós.

Em nosso idioma, demolir não é possível de ser ação individual, aspecto esse que eu gostaria que fosse interpretado à luz de sua potência. Potência ativa, não reativa.

Sofia Borges – Tem essa coisa da cultura como espaço virtual a priori. Quando falo cultura, quero dizer a ciência, a economia, a filosofia, a religião, arte, política, linguagem: tudo que existe virtualmente são enormes braços da cultura. A ciência não está acima da cultura. A ciência é um aspecto da cultura. Você acreditar na ciência é cultura, não é o contrário. Entendo a cultura como uma enorme bacia transparente que abriga todas as coisas que significam; tudo está dentro, e nada — nada mesmo — escapa disso. Significado é cultura. Sinto que a constatação mais importante que me ocorreu nos últimos anos é que a cultura é, afinal, uma manifestação da natureza. O estado de cultura, a vontade de significado, isso é gerado por um processo que é a natureza, porque tudo é natureza. Não tem como não ser natureza. Não é que a gente inventou a cultura. É da natureza da vida expandir-se em significado até virar cultura, como também é da natureza inventar a si próprio e dar sentido. Os corvos fazem rituais funerais. Um corvo morre e eles fazem uma dança, uma específica. Vou só citar esse, mas existem tantos exemplos…

Paula Borghi – Esse pensamento quebra com a dualidade colonial que foi posta pra gente: natureza versus cultura. Não existe essa separação, e Philippe Descola destaca esse aspecto em Outras naturezas, outras culturas; Eduardo Viveiros de Castro comenta de forma semelhante a partir da ideia de animismo. Por exemplo, o pessoal da Aldeia Maracanã está tirando o asfalto sobre a terra, de uma terra que é viva e que está se regenerando. Como você mesma falou: “A terra tá pulsando, tá viva”. A Terra é vida!

Sofia – Exatamente! A Terra é todos os elementos, como um corpo que é todas as células, todas as bactérias, todos os líquidos… tudo isso é o corpo. Só que são bilhões de manifestações que operam a partir de um lugar próprio, que têm inteligência, centro, propósito e consciência.

Paula – E assim chegamos à questão da invisibilidade. Melhor, como você bem coloca, da imaterialidade da matéria.

Sofia – Isso, da imaterialidade da matéria, que agora está chegando a um ápice em que estamos conseguindo viver essa virtualidade da matéria, que é também a cultura, que é o significado sem a matéria, que são esses metaversos, esses lugares onde a coisa é tão real quanto a nossa realidade, só que ela não está agregada a uma coisa em si, que existe fisicamente, né? Um território dentro de um videogame é tão irreal quanto um território de dois países. É tão inventado quanto, é tão ilógico quanto. As regras de qualquer jogo estão dentro do videogame, mas fora do videogame estão, igualmente, inventadas. Só que antes a gente estava acostumado a ter, talvez o patriarcal — o que a gente está chamando de patriarcal —, como uma fase em que as coisas são em relação a uma posse da matéria. Quando eu pesquisava nas cavernas pré-históricas, tive a oportunidade de conversar com arqueólogos quando discutiam sobre todas as teorias a respeito dos motivos que levaram aos desenhos da caverna de Chauvet, sobre quem eram… Isso data de 35 mil anos atrás, e tem desenhos sobrepostos aos primeiros, feitos 10 mil anos atrás. Os desenhos de 35 mil anos para mim derretem a teoria da arte enquanto evolução progressiva da arte e do conhecimento. Foi escutando sobre isso e outras coisas que aprendi que houve um momento no mundo em que os humanos pararam de desenhar nas cavernas, em todas as partes do mundo. E isso é alinhado com o fim do homem fundamentalmente nômade, que passa pela terra mas não se sente apropriado dela. Isso, essa posse, coincide com o surgimento da agricultura. Então, voltando ao patriarcal, que era o meu ponto, eu suspeito, tem início com a agricultura. Paramos de ter uma relação plena ou feminina com a natureza, de entender e esperar pelos seus ciclos, paramos de ser nômades. A compreensão da vida como ciclo para de ser feminino (fases da lua, estações do ano) e passa a ser em torno do sol como esse provedor ininterrupto? Passamos a assumir, como agente humano, que a terra é minha e o que vem dela também. Somente porque passei a semear esse espaço; esse fruto é meu porque eu semeei. Eu sou o provedor e tudo gira ao meu redor. Sêmen vem dessa prepotência, a adoração fálica. A guerra também. A primeira commodity é a terra, quando ela vira propriedade. Depois os animais, e as mulheres também viram commodities. As crianças também precisam ser asseguradas de que pertencem a esse ou àquele clã, que são daquele homem, porque servirão para trabalhar na terra. Daí surgem as religiões monoteístas, em torno de um Deus unificado e masculino, trazido por alguns messias também únicos e homens, que asseguram que receberam essa nova lógica absolutista por força divina.

Paula – É sempre a propriedade privada…

Sofia – Propriedade privada; do divino, inclusive. E você passa a associar as mulheres a essa propriedade privada. Cria uma religião que corrobora essa dominação, que justifica a guerra como forma de defender o território físico, ideológico, religioso. Vivemos isso até o exacerbamento, a ponto de pararmos neste estado de imaterialidade. Vivemos a virtualidade desde o início dos tempos. Toda realidade é virtual. Esta xícara na minha frente é tão virtual quanto a cultura, quanto a divisão de posses, quanto qualquer matéria investida de sentido. A gente falar que uma xícara é uma xícara. O que faz a xícara ser uma xícara, além da minha crença, do meu empenho em fazê-la operar ser xícara? Por que eu não cavo com uma xícara? Qual é a diferença de uma xícara aqui e de uma xícara no videogame? As duas têm a mesma função, as duas são colocadas na cozinha, e a privada é no banheiro, apesar de serem feitas de cerâmica. Elas estão separadas por esse ordenamento, que é virtual. O virtual valida a loucura que a gente está vivendo: as grandes doenças do mundo são a crença de que o dinheiro existe e que o lixo existe. O conceito de lixo pra mim é a coisa que mais me angustia, com certeza porque é uma vontade de destruição que não entra na lógica do capital. Não existe tal coisa como lixo, isso foi inventado e é perverso. É morte ao invés de potência, de transmutação. É fim ao invés de movimento. Outra coisa que me choca: se você não tem dinheiro, você não compra comida. Se você não compra comida, você morre. E não é contra a lei alguém morrer de fome. O Estado não se responsabiliza por alguém que não tem dinheiro; ele está autorizado a morrer.

Paula – Isso é muito forte.

Sofia – E o dinheiro não existe, então é muito bizarro o que está acontecendo. Sabia que as moedas nacionais, elas sequer continuam atreladas a um valor real? As instituições, os Estados, hoje em dia apenas imprimem dinheiro. Não é como se aprende na escola, que o ouro fica guardado em determinado lugar e significa a quantidade de riqueza que se tem. Com a moeda é diferente. Os Estados Unidos imprimem bilhões de dólares se quiserem, e o mercado financeiro fica operando isso. Essa lógica escraviza todos os seres, todas as cadeias de relações. O ouro, extraído durante centenas de anos, não gerou transformação por ser riqueza, mas ficou circulando como uma nuvem de morte, de poder dissociado à potência. A disfunção ou dissociação que vivemos hoje não é novidade. É só um pouco mais virtual, e um pouco mais perversa.

Paula – Mas, sob essa lógica, vale lembrar que a linguagem e a cultura também são invenções nossas. A comunicação é uma invenção. Podemos ainda dizer que as artes visuais são a invenção da metáfora, porque correspondem a uma espécie de poesia visual.

Sofia – E é nesse espaço que eu entendo que nós nos salvamos, no final — nesse lugar onde a linguagem tem uma potência de vida, onde a arte tenta fazer isso, tenta gerar significado que é potência de significado. Tenho certeza: isso em si já é político, isso em si já é uma resistência política.

Paula – Depende do que você faz. Às vezes é só produção de capital.

Sofia – Mas eu quero dizer: você se preocupar com a função simbólica da cor ou de uma palavra enquanto potência poética é um gesto de crença na arte e é algo profundamente humano. Algo associado à resiliência de se permanecer poroso, de se permanecer afetado pela vida. E se manter assim, sensível, é uma resistência política. Mesmo se eu estiver fazendo um poema sobre pequenas flores que nascem no alto da montanha… isso é resistência… Você não acha?

Paula – Não sei, depende. Acho que é complicado. Não sei se toda arte é política. Escutei que fazer arte é um gesto político a minha vida inteira e acreditei. Tanto que fui estudar arte. Mas depois, uma vez no meio, tenho minhas dúvidas. Dependendo do que você faz, pode ser… ou pode ser só uma forma de produção de capital.

Sofia – Não, tudo bem. Se você for uma vendedora de quadros, ou pinta unicamente com a ideia de vender quadro, tudo bem. Mas eu quero dizer: você se preocupar com os aspectos das cores ou da poesia, isso é um gesto de crença na arte; crença em algo que é de uma sensibilidade profundamente humana. E se manter sensível é uma resistência política, mesmo se eu estiver fazendo um poema sobre pequenas flores que nascem no alto da montanha na Suíça. Você não acha? Em qual momento a arte não é política?

Paula – Vários.

Sofia – Mas dá um exemplo.

Paula – Pensa no lixo, então, de que estávamos falando antes de começarmos a gravar a conversa. O lixo é algo que te atordoa, que te move, que te deixa incomodada, que te afeta. Não?

Sofia – Sim, só lembrando que o lixo é uma demolição da vida. Tudo é potência.

Paula – Sim. Então, olha as diferenças subjetivas que essa perspectiva traz. Quando você fala comigo e diz que isso não é lixo, podemos indagar como que a gente pensa as coisas. Por exemplo, após comer um negócio na esquina, o prato de plástico deixa de ser prato e se torna automaticamente lixo. Mas o prato de plástico não é lixo. A ideia de que depois de usado o prato se torna lixo é morte, não é?

Sofia – É morte.

Paula – Quando eu converso com as integrantes da Dulcineia Catadora, elas dizem: “Não, isso não é lixo. Nós não somos catadoras de lixo. Somos catadoras de material descartado”.

Sofia – Lógico! Lógico!

Paula – Isso faz toda a diferença, porque é como você age no mundo, como você se comporta. Um detalhe que faz toda a diferença. Em analogia à arte, nem sempre fazer arte significa fazer política, depende muito de como esse fazer se relaciona com o mundo.

Sofia – Mas isso porque a gente vive numa sociedade que execra, que mata, que é colonialista, que é machista, que é doente.

Paula – É interessante apresentar essas diferenças, essa oposição. Você vai falar da destruição, mas você pode falar pelo viés da construção, da potência.

Sofia – Porque a vida é só potência.

Paula – Potência que pode ser usada tanto de forma reativa, como ativa. Então tem que ter muita atenção.

Sofia – E o que seria a potência ativa?

Paula – A potência ativa é aquilo que cria mundos. Que traz, a partir da imaginação, possibilidades de criar mundos. Não mundos “vou para Marte”…

Sofia – É lógico.

Paula – Mundos aqui, mundos por vir. Mas esses mundos não são dados pra gente. Porque, se a gente for seguir o que é dado, nunca vamos conseguir criar mundos. Temos o que é dado pelo capital, pelo dinheiro, por essa herança…

Sofia – Ele é descartado, descartável, e depende de você para consumi-lo…

Paula – Exato! Querem que vejamos a natureza como um bem de consumo. Isso é a primeira fase da morte. Falar que uma árvore é um bem de consumo é um pensamento extrativista. É urgente criarmos possibilidades de criar mundos.

Sofia – Paula, eu intuo que todo ser é selvagem. E pressinto que tudo é o avesso da morte. Então vamos criar mais mundos, está bem?!