Martelo, bigorna e estribo: por dentro das novas entrevistas do Escuta
Estão invisíveis. Dentro do ouvido. Ficam escondidos em uma pequena caverna e são protegidos pela cera, essa célebre invenção do corpo humano de quem insistimos em desdenhar. Ali, na parte interna do canal auditivo, encontramos os três menores ossos do corpo trabalhando lado a lado, em conjunto. Mesmo que discretos, a responsabilidade desses ossículos é imensa: amplificar o som que recebemos do mundo. Basicamente, o ofício do trio é nos fazer ouvir.
Quando pequeno, nasci com orelhas muito maiores do que as das crianças da minha idade. Meus primos, que eram todos mais velhos e que construíram nossa intimidade na base da chacota, costumavam apontar para velhinhos na rua e dizer que a orelha é o único órgão que, ao longo da vida, nunca cessa de crescer. Por isso, quando eu chegasse próximo dos oitenta anos de idade, as minhas seriam maiores e mais pesadas do que o meu pescoço seria capaz de suportar.
Ainda nessa época, logo que descobri que os ossinhos que cuidam da audição humana têm o formato de três objetos – martelo, bigorna e estribo – não consegui deixar de imaginar, a um só tempo curioso e encabulado, se os ossos miúdos também acompanhariam a promessa de crescimento desenfreado da minha orelha, alcançando o tamanho de ferramentas reais. Dentro de mim, havia o potencial de uma ferraria inteira, e isso me assustava e me fascinava em igual intensidade.
Hoje, com a maldição dos primos tendo dado com os burros n’água e com orelhas adultas que não desafiam a capacidade do meu pescoço, sigo pensando nos pequenos ossos que nos dão a possibilidade de escutar. Ainda me fascina o fato de que a menor parte humana tem o poder de expandir aquilo que há de mais etéreo na vida: o som, a fala, a música.
Esse fascínio me levou a transformar minha própria escuta no Escuta, um programa online que, na verdade, é uma espécie de ponto de encontro virtual para gente que é ligada em arte. Demos início às primeiras gravações no final do ano passado e, agora, o projeto chega ao terceiro ciclo de entrevistas inéditas. Pouco a pouco, nossa missão vai ficando cada vez mais clara: reunir mentes criativas e interessantes de diferentes áreas artísticas – e ouví-las sem pudor.
Nessa nova fase do programa, que é realizado pelo Instituto de Apoio à Orquestra Sinfônica do Paraná, o Escuta migrou de São Paulo para o Rio de Janeiro. A imponência das primeiras edições, que foram abrigadas por duas das mais importantes instituições culturais do Brasil (a Pinacoteca de São Paulo e a Sala São Paulo), deu lugar à vista deslumbrante do bairro carioca de Santa Teresa, no Hotel Chez Georges.
O eixo curatorial das entrevistas seguiu uma transformação semelhante: Ana Frango Elétrico, Alexandre Nero, Carlos do Complexo e Denilson Baniwa, artistas que ocupam o centro da produção musical e artística de hoje em dia no país, compartilharam no programa um pouco de suas trajetórias e de seus pensamentos.
Com shows lotados por todo o Brasil, Ana acaba de encerrar a última turnê de seu aclamado disco “Little Electric Chicken Heart” e, após concorrer ao Grammy Latino aos 23 anos, prepara o lançamento de seu terceiro trabalho de estúdio. Carlos do Complexo também foi indicado ao Grammy Latino por “Visceral”, trabalho audiovisual feito em parceria com Fran Gil e Bibi Caetano. Além disso, o artista lançou o excelente “Torus”, disco que parte de conceitos da geometria para misturar, com maestria, gêneros musicais como funk carioca, grime, música eletrônica e música experimental. Denilson Baniwa é artista plástico, curador, performer e ativista dos direitos indígenas. Vencedor do prêmio PIPA Online 2020, Denilson participou da Bienal de Sydney, na Austrália, acaba de encerrar uma exposição individual no Rio de Janeiro e estará, ainda em 2022, em uma exposição no Getty Museum, em Los Angeles. Após um hiato de 11 anos, Alexandre Nero estreou seu mais novo álbum, intitulado “Quartos, Suítes, Alguns Cômodos e Outros nem Tanto”, que conta com canções orquestradas e parcerias com entidades da música brasileira como Elza Soares, Aldir Blanc e Milton Nascimento.
Em um show recente que assisti, vi Zé Ibarra, músico que participou da segunda temporada do Escuta, contar que João Gilberto cantava em uma unidade imaginária mínima, chamada “grão da voz”. Pesquisando sobre essa expressão, descobri que ela foi inventada por Roland Barthes, escritor francês que disse que o grão é a dimensão corporal que torna cada voz única.
Pensando sobre tudo isso, sinto que também me interessa encontrar alguma espécie de grão da escuta: uma unidade mínima que ouça de Ana a Denilson, e que reúna o que há de autêntico nas vozes que comigo compartilham o tempo e a geração. É esse o interesse: pelo martelo, pela bigorna, pelo estribo.