Entre a kitanda e o samba: mulheres negras, sementes e reinvenções
Em 1766, fez-se ouvir uma reclamação vinda de quitandeiras que trabalhavam em frente ao prédio do Senado (região onde hoje é a Praça XV de Novembro), no Rio de Janeiro. Mesmo pagando “pelo ponto”, elas estavam recebendo ameaças de despejo. Diante da situação, escreveram formalmente para a Mesa da Câmara dos Vereadores. Conseguiram como aliado o procurador da Câmara Municipal da Colônia e, como resposta, receberam o parecer favorável, que determinou que as quitandeiras retornassem ao seu local de trabalho, sob a alegação de que o “bem comum” deveria ser priorizado.
O vocábulo “kitanda” tem origem da região centro-ocidental da África, onde se referia a espécies de feiras e mercados organizados especialmente entre os povos de origem quimbundo. As vendas eram realizadas na rua, e as principais agentes do comércio eram mulheres, que trabalhavam majoritariamente com itens alimentícios como peixe seco, frutas, legumes, doces, sem deixar de lado a venda de fumo, aguardente e outros objetos e utensílios. Esse formato se mantém nos centros urbanos, demarcando um espaço físico de disputa, protagonismo negro e feminino e, especialmente, possibilidade de criação e encantamento político, subjetivo e simbólico.
O “causo” e marco histórico que envolveu as quitandeiras no século XVIII sinaliza um avanço em relação à cidadania plena no Brasil, mas demonstra também uma questão essencial para a discussão que veremos a seguir: a capacidade de organização, articulação e incidência política de mulheres negras, entre elas as empreendedoras e artistas.
A pintura de Henry Chamberlain é apresentada aqui como recurso artístico, social e político situado em determinado espaço-tempo. Não representa, de forma alguma, um retrato totalmente fidedigno da realidade, mas uma possibilidade de interpretação desta. Entremos nela.
A cena ilustrada por Chamberlain apresenta algumas pistas interessantes para nosso caminho entre a kitanda e o samba. A predominância de figuras femininas é um dos primeiros aspectos que chamam atenção. Sejam escravizadas, escravizadas de ganho, libertas ou livres, as mulheres negras possuíam uma forte circulação nas áreas urbanas do Rio de Janeiro, sendo essenciais na economia da cidade e na manutenção das atividades no que é considerado o centro da cidade. Forneciam alimentos para os que iam e vinham e, também, para aqueles que mandavam e desmandavam. É das mãos de mulheres negras que vem a comida que alimenta a economia e a política carioca. O caráter semiambulante é outro que chama atenção. Era possível perceber bancas, espaços de certa forma estruturados, porém muitas das quitandeiras vendiam seus quitutes e utensílios em vasilhas equilibradas sobre a cabeça, ou em tabuleiros ou cestos. Coexistiam as quitandas “estacionárias” e as quitandas ambulantes. O terceiro aspecto que cabe ressaltar é a presença de instrumentos musicais na pintura. As quitandas eram também locais de troca, encontro e reinvenção subjetiva e artística entre indivíduos negros. Muitas vezes vistos como “arruaça”, os “divertimentos das gentes negras” ocorriam dentro de uma lógica de inventividade constante.
Enquanto circulavam as quitandeiras no Rio de Janeiro, nascia, em Santo Amaro, Hilária Batista de Almeida, posteriormente conhecida por Tia Ciata. O fluxo entre Bahia e Rio de Janeiro reforçou um roteiro transatlântico de identidades negras, que marcou muitos dos fenômenos culturais e epistemológicos que construíram nosso país. As “cidades negras” possuíam diálogos neste e em outros planos. Aos 22 anos, Ciata chegou ao Rio de Janeiro, indo morar na região da Pequena África e, depois, na área da Cidade Nova. Iniciada no candomblé na Casa de Bambochê (nação Ketu) e continuando seus preceitos na casa de João Alabá (Rio de Janeiro), Ciata despontou como uma incentivadora e mantenedora das práticas religiosas e culturais negras, mesmo diante da forte repressão implementada pelo Estado brasileiro. Sua casa na Praça Onze tornou-se espaço de encontro e criação entre grandes nomes do samba no Rio de Janeiro. Formava-se, assim, um dos mitos criadores do samba no Rio de Janeiro, onde a figura central é uma mulher negra.
Assim como as quitandeiras, Tia Ciata retomou o elo entre o que hoje chamamos de empreendedorismo e as artes negras. Conhecida como “tia baiana”, foi uma das responsáveis por fortalecer o ofício das baianas quituteiras, que, assim como as quitandeiras, vendiam seus produtos e tinham grande influência na comunidade. Destacam-se também tias baianas como Dona Bebiana, Dona Carmem, Dona Amélia, Dona Perciliana, entre outras.
Mesmo sendo essenciais para a existência do samba, as mulheres negras não escaparam do silenciamento e das diversas opressões derivadas do machismo e do racismo. Dona Ivone Lara – uma das pioneiras no samba –, por exemplo, teve seus sambas muitas vezes apresentados por seu primo Mestre Fuleiro, uma vez que mulheres compositoras eram vistas ainda com muitos preconceitos. Ainda assim, foi a primeira mulher a assinar sambas, especialmente na área de sambas-enredo.
Clementina de Jesus era neta de escravizados. Nascida em 1901, Quelé, como ficou conhecida, ajuda-nos a visualizar como a escravidão estava e ainda está perto. Subvertendo a lógica de subjugação da intelectualidade negra, Clementina passeava entre o samba, o jongo, o lundu e diversas outras manifestações da musicalidade negra. Tanto que, além de “Quelé”, ganhou um segundo apelido, “Rainha Ginga”, tamanha era a força da ligação entre África e Brasil que vinha das produções da sambista, que lançou 11 álbuns ao longo de sua vida e carreira.
Assim como Clementina, a história da sambista Jovelina Pérola Negra também é um desenho da realidade brasileira quando falamos de mulheres negras. A carreira no samba começou quando a artista tinha mais de 40 anos, pois grande parte da vida de Jovelina foi dedicada à profissão de empregada doméstica. O apelido “Pérola Negra” marcava um forte aspecto da sua carreira: a valorização da negritude. Importante destacar que, diferente de outros compositores e cantores (em grande parte homens e/ou brancos), o reconhecimento veio tarde, e Pérola Negra não recebeu em vida o retorno financeiro que merecia. Ficou plantada a semente do samba e aberto o caminho que sambistas negras percorrem hoje.
Tia Ciata, Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus, Dona Dodô da Portela, Leci Brandão, Elza Soares, Tia Surica, Alcione, Teresa Cristina, Mariene de Castro, Fabiana Cozza, Mart’nália, Nilze Carvalho e tantas outras marcam a presença ininterrupta das mulheres negras no samba. Embora muitas vezes invisibilizadas pelo machismo e pelo racismo, não há samba sem as mulheres negras, responsáveis por criar estratégias de organização coletiva extremamente sofisticadas, tanto no âmbito operacional quanto no simbólico – alimentando em suas quitandas, disputando narrativas para a manutenção dos espaços de convívio comunitário, compondo, tocando, cantando, sambando e existindo. Repito: não há samba sem a mulher negra.
Desde as quitandeiras, passando pelas tias baianas, as sambistas cariocas, as compositoras e todas as “engenheiras do samba”, podemos perceber que foram as mulheres negras que acenderam a faísca que hoje mantém o samba aceso como fenômeno musical e espaço de sociabilidade.
Muito além de arte e empreendedorismo, kitanda e samba formam uma ponte para a manutenção de tradições africanas e lembranças de algo que nunca devemos esquecer como sujeitos em diáspora: nossa identidade negra.