“A Vida Futura” e reflexões sobre a linguagem
Imagine o espírito de Machado de Assis, um tanto confuso, esbarrando em discussões ensandecidas que, à luz do presente, problematizam um punhado de obras canônicas (como a dele próprio), sobretudo no que diz respeito à linguagem. Agora coloque ao lado de Machado o espírito de um José de Alencar igualmente aturdido — porém mais desgostoso —, olhando tudo com pavor e fascínio, como um acidente de carro do qual, mesmo enquanto uma entidade vinda de um plano superior, não se consegue tirar os olhos. Para finalizar o quadro com pinceladas sorridentes, pense num campus do Rio de Janeiro cheio de alunos e alunas em entusiásticos palavrórios, esbravejando opiniões e pronomes inclusivos.
Esse é “A Vida Futura“, o bem-humorado e agradavelmente rocambolesco novo romance de Sérgio Rodrigues.
Autor de outros títulos como “O Drible” (2013), que abocanhou prêmios importantes há quase uma década, Rodrigues olha com bom espírito para as questões linguísticas hoje tão em voga — “Ser ou não ser?”, se perguntava Hamlet, no reino podre da Dinamarca; “Escrever ou não escrever todxs/todes?”, nos perguntamos nós, no reino esfumaçado da atualidade. Eis a grande questão, talvez uma das maiores dos nossos tempos.
Tudo começa com uma professora, dona orgulhosa de um projeto chamado “Luta de clássicos”, que visa a reformulação de certas obras clássicas, em especial as que costumam figurar nas listas de leitura das escolas, com o intuito da simplificação delas em prol da acessibilidade. O grupo de revisores, no entanto, parece pender com mais força para o lado da formatação moral de tais escritos. Aviltados, Machado de Assis e José de Alencar decidem baixar em solos cariocas na forma de espíritos — tudo para pegar no pé da docente. No meio disso, somos apresentados à Mar, personagem negra e não-binária que expressa opiniões fortes sobre as reverberações da literatura machadiana aos ouvidos da contemporaneidade.
Para tratar do assunto espinhoso de forma inventiva, à guisa de um distanciamento das páginas vigentes da história, “A Vida Futura” tem o próprio Machado como narrador. Dessa opção pela primeira-pessoa, percebe-se de cara a proposta não-panfletária de Rodrigues, que se propõe a abrir um diálogo entre épocas se esquivando de antagonismos — sem fugir, contudo, de questões hoje centrais, como a negritude do autor. Ao dar o bastão de fala a Assis, coloca-se em perspectiva tudo aquilo que é feito de sua imagem no presente, seja pelo vozerio da militância política ou de qualquer fórum que corra pelas beiradas do que está escrito em seus livros.
Um ponto marcante e relevante do romance recém-lançado é o retrato, construído a partir de uma situação sobrenatural um tanto quanto crível, do quão picaresco pode ser ficarmos ultra obcecados com algo e levarmos a contenda aos seus extremos, a ponto de sentirmos a necessidade de canetar obras canônicas, tamanho é o ensimesmamento com a nossa época e valores. A reavaliação de muito do que foi, e ainda é, dito, configura um passo significativo para um desprendimento benéfico do que tem de danoso no passado, mas aplicá-la a determinadas circunstâncias talvez não adicione muito ao pleito.
É comum ouvirmos ou lermos por aí o bordão “a língua é um organismo vivo que está em constante transformação”. Seguindo essa linha, a comunicação sempre se dá dentro de um contexto, da época em que ela está inserida, e vai evoluindo conforme às mudanças dos panoramas das sociedades atuais. Novos momentos sociais, reparações históricas, valorizações atrasadas de culturas antes negligenciadas, acolhimento de termos que nasceram pejorativos… São muitos os porquês que acabam por alterar a maneira como falamos — ainda bem. Tendo em vista a história que nos precedeu, no Brasil e em qualquer lugar, melhor que seja assim.
No registro informal, essas adaptações se naturalizam num tiro mais ágil; ao passo que, na norma culta, o processo se dá em marcha lenta e, muitas vezes, nem chega a ver a luz do dia. Claro que não devemos negar sua importância, mas que se tenha em mente que, muito embora dê certa estabilidade à língua e continue sendo um recurso de legitimação de discurso, ela reflete o mundo em que os mais privilegiados ditam as regras de acordo com o próprio umbigo.
Rafael Julião, no texto “Cuidado com a língua“, para a edição Amarello Fagulha, diz com propriedade: “Os preconceitos linguísticos não são inerentes aos fenômenos linguísticos; eles são fruto de preconceitos culturais que, por sua vez, estão amparados em preconceitos sociais.”
Ou seja, mais do que nunca, é necessário que se tenha dimensão e controle sobre o que falamos ou escrevemos. Cada vez mais, vem-se explicitando a origem problemática de muitas expressões, termos e adjetivos que moravam na ponta da nossa língua. Exemplo disso é o caso recente da cantora Beyoncé, cujo sétimo álbum, “Renaissance”, mal saiu e já teve letras trocadas duas vezes — uma delas, por ter sido acusada de capacitismo pelo termo spaz (de espasmo), o mesmo ocorrido com Lizzo, outra diva pop, há alguns meses.
Caso Machado de Assis descesse do céu dos escritores para nos fazer uma visita, talvez tomasse um belo dum susto com a comunicação mais célere, empática e feroz de agora. José de Alencar, então, podia muito bem desejar uma segunda morte. As ponderações sobre isso estão bem representadas em “A Vida Futura”, mas, recorrendo novamente a Julião, “o fato é que a língua é sintoma e prenúncio, consequência e causa, acompanha as tensões sociais, traz dela questões novas e projeta futuros possíveis.”
Trocando em miúdos — assim caminha a humanidade e, consequentemente, assim caminha a linguagem.