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#42ÁguaCulturaLiteratura

Morada do ausente

por Marcelo Ferreira de Oliveira

Apesar do obscurantismo comumente atribuído à Idade Média, tempo de cruzadas religiosas, inquisição e vassalagens, houve também no medievo uma conquista que, segundo Giorgio Agamben, na obra “Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura ocidental”, marcou a cultura do ocidente até os dias de hoje. Trata-se da concepção do amor como processo fantasmático, formulada pela primeira vez na poesia provençal trovadoresca do século XIII.

Havia antes na Antiguidade a contraposição entre o amor celeste e o amor vulgar. Nos livros “Fedro” e “Banquete”, por exemplo, Platão concebe o amor contemplativo como uma experiência espiritual elevada, desvinculada do corpo e propiciada pela Vênus Celeste. Já o amor concupiscente estaria ligado a Vênus Pandemia, de natureza terrestre e vulgar. Ao conceberem o amor como fantasma, os poetas trovadores superaram essa oposição. Grosso modo, o fantasma seria, ao mesmo tempo, a imagem que resta, na imaginação do sujeito que ama, do objeto amado perdido (como a da mulher inacessível, no caso da poesia trovadoresca), e a nuvem de desejo que circula no corpo desse mesmo sujeito. Esse espectro reúne o espiritual e o corpóreo, ecoa vozes distantes, espelha movimentos furtivos e, por ser formado de desejo, abala as entranhas do corpo. E o poema amoroso se torna a ponte entre o desejo e o objeto ausente. Faz-se a morada, a estância, o lugar de fruição da experiência amorosa, na medida em que captura o fantasma em seu corpo ambíguo de palavras, traduzindo a complexidade dessa experiência. 

A água tem papel fundamental nesse processo fantasmático. A imagem que se desprende da matéria entra em contato com os olhos, órgãos predominantemente aquosos que atuam como um espelho de duas faces. Uma face retém a imagem externa, e a outra a transmite para a imaginação, que, por sua vez, inscreve-a em si como fantasma. Não por acaso, a fonte de Amor e o espelho de Narciso relacionavam-se à virtude imaginativa, atribuindo a essas águas, no entanto, o estigma da conjunção de amor e morte, já que a imagem refletida na água é destituída de corpo, espectral.

Nesse sentido, a leitura medieval do mito de Narciso não se confunde com uma interpretação comum que lhe é dada pela psicologia moderna, de que o sujeito narcísico, ao se enamorar por si mesmo, revelaria excesso de amor próprio. Para um leitor medieval, o risco narcísico consiste no erro cometido pelo sujeito que passa a conceber a imagem de si refletida na água como criatura real. Segundo Agamben, aludindo a Chiaro Davanzati, “Como Narciso, na sua espera mirando | se enamorava da sombra na fonte.” Ao se apaixonar por uma sombra, uma imagem, o sujeito tenta apropriar-se do irreal, rompendo a esfera do jogo poético, que é um modo precário de ligar o desejo à imagem do objeto ausente. 

Pensando na influência dessa tradição poética provençal na poesia moderna brasileira, podemos ler nestes versos do poema “O quarto em desordem”, de Carlos de Drummond de Andrade, a consciência do eu poético acerca da natureza fantasmática do amor: 

Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala 
sensível e secreta me atormenta 
e me provoca à síntese da flor

que não se sabe como é feita: amor, 
na quinta-essência da palavra, e mudo 
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objeto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo!, corpo, corpo

verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama, 
a passear o peito de quem ama. 

Eis alguém a cometer a derrapagem de sofrer de amor já na casa dos cinquenta anos. O eu poético maduro é tocado por uma pétala que, mesmo sendo uma fração delicada de uma flor, atua como espinho, atormentando-o e provocando-o a compreender a natureza desse sentimento, a “síntese da flor”. Mas esse amor não pode ser apreendido pelo sujeito, que o expressa também na imagem aérea da nuvem. Esta que oscila entre o alto e o baixo e acaba por se diluir no corpo, metaforizando o fantasma composto de desejo, potente como um cavalo que pisoteia o peito de quem ama.

Cabe sublinhar, todavia, uma diferença essencial entre o trovadorismo e a poesia moderna. Os trovadores medievais investiam uma autoridade no poema, tendo-o não só como um jogo de palavras (joi d’amor), mas também como a estância de uma celebração alegre da experiência amorosa. Apesar de reconhecerem a sua natureza textual, tinham o poema como uma “escada espiritual” capaz de unir o desejo com o objeto ausente. Já na modernidade há a perda de confiança nessa capacidade restauradora da poesia. O canto amoroso assume um tom elegíaco, a lamentar a perda do objeto desejado e sua impossível recuperação. Mas não deixa de se tornar a morada comovida da ausência. E, como neste último verso de “A vida passada a limpo”, de Drummond, acaba por reunir amor e morte, em sua atmosfera fúnebre de lagoa iluminada pela lua, a refletir na água diáfana a imagem do que se perdeu: “essa alvura de morte lembra amor”. 

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