Irresponsabilidade coletiva? Como a diferença entre gerações está cada vez maior
Para pessoas que nasceram antes dos anos dois mil, o controle remoto da televisão era um grande agente de interação com os avós. A dificuldade com o dispositivo às vezes era tanta — seja por inabilidade ou por problemas de visão que impediam que os avós enxergassem os números do controle — que a solução mais simples para os netos era pegar o controle e, aos sons da clássica reclamação de que aquela “porcaria” não estava funcionando, mudar para o canal desejado. Bem ou mal, o problema se resolvia, mas ele voltava a aparecer, muito possivelmente já nas próximas horas; na melhor das hipóteses, no dia seguinte. A impaciência, é verdade, vinha dos dois lados. Ensinar e aprender eram incumbências árduas. Para as pessoas que nasceram nos anos dois mil, há uma profusão de inovações que, tais quais aqueles controles remotos (que ainda existem e vão muito bem, obrigado), parecem indispensáveis e podem causar confusão a quem não está acostumado a aprender a mexer em um novo aparelho com tanta frequência. Direta ou indiretamente, com mais ou menos drama e belicosidade, todos já vivemos cenas similares a essa.
Por um lado, negligencia-se a tarefa atávica de auxiliar pessoas idosas a compreender e utilizar dispositivos, de promover algum tipo de engajamento com inovações digitais. Por outro, pessoas idosas resistem em aprender e se adaptar a essas novidades. Surge, então, a grande questão: onde começa e onde termina isso tudo? Essa é uma dinâmica tão intrigante quanto problemática. É como se houvesse certa irresponsabilidade compartilhada entre as gerações, cada uma considerando apenas o contexto próprio, fechando os olhos para um cenário maior de integração sadia. A pressa pelo futuro digital bate mais rápido e mais forte do que a vontade de incluir; a acomodação, que se faz de rogada, inviabiliza qualquer mergulho no vasto oceano de gadgets e inovações.
A falta de colaboração e compreensão vista amiúde em lares que abrigam gerações distintas provoca uma crescente exclusão digital sistêmica, algo que vai muito além de alguém não conseguir usar um smartphone ou navegar na internet. Ela também se traduz em um descompasso cultural enorme, uma desconexão entre faixas etárias que extrapola o que seria tido como normal e que pode afetar seriamente — se é que já não está afetando — a coesão social, comprometendo a transmissão de conhecimento e experiência de uma geração para a próxima. Um fator que aumenta esse descompasso para além da conta e faz com que esse seja um problema maior hoje em dia do que sempre foi é o rápido ritmo de mudança na tecnologia e, consequentemente, na sociedade. Nunca estivemos em marcha tão alta. Nunca antes levantamos tanta poeira com os pneus da modernidade. Novos dispositivos, aplicativos e corpos de ideias vêm se multiplicando — e isso é um desafio constante para pessoas de todas as idades, não só para os idosos. Nem sempre a adaptação acontece de maneira natural, e quanto mais distante você se sentir de um momento da história, mais improvável é que isso ocorra organicamente. Muitas vezes, porém, os que cresceram imersos nesse ambiente digital e que conseguem processar novidades com mais facilidade presumem que os mais velhos devem acompanhá-los na absorção das coisas. Essa presunção ignora o fato de que os idosos podem não ter tido a mesma exposição ou oportunidade de aprender a lidar com essas ferramentas.
Existem muitos motivos para a possível rejeição de novas tecnologias por parte dos idosos. Entre eles, destacam-se: o medo do desconhecido (porque, sim, o mundo digital pode assustar qualquer um que não o conhece); o receio de serem deixados para trás (por mais paradoxal que possa parecer, é um receio circular que também causa aquilo que se teme); as dificuldades cognitivas relacionadas à idade (que, por mais que tentemos evitar, vêm e geram complicações); ou, simplesmente, a sensação de que suas formas tradicionais de interação e comunicação são mais autênticas. Essa resistência pode, inclusive, ser amplificada pela sensação de que a sociedade está se afastando de valores e práticas mais antigas. Antes, os valores que tocavam a sociedade pareciam mais intransponíveis, blindados contra novas opções. Agora, para o bem de todos nós, a conjuntura é outra: as mudanças socioculturais estão em ritmo tresloucado e, hoje em dia, estão muito ligadas a novas plataformas, que promovem um diálogo mais aberto e inquisitivo. Quem considerar que não faz parte dessa mudança de mentalidade geral, inconscientemente, também se fecha para muitas das novidades que poderiam ser interessantes a ela em diferentes esferas.
Evidentemente, não dá para dizer que é culpa de um ou de outro. A responsabilidade — supondo que essa seja a palavra certa — recai sobre ambas as partes. Os mais jovens podem se beneficiar ao reconhecer a importância de ensinar e apoiar os mais velhos nessa jornada digital; os mais velhos podem tirar muita coisa boa de tudo que está acontecendo, explorando ferramentas que podem auxiliar sua saúde, seu bem-estar e sua vida tanto pessoal quanto profissional. Essa atitude não apenas capacitaria as pessoas idosas, mas também poderia levar a uma maior conexão intergeracional e ao compartilhamento de experiências valiosas. A população idosa pode considerar a aprendizagem contínua como uma maneira de se manter envolvida na sociedade em constante evolução. Para que isso aconteça, é necessário desatar alguns nós, a começar com um dos maiores: a negação.
A negação dessa realidade é uma camada densa do complexo tecido social que envolve a relação entre as gerações. Os mais jovens muitas vezes estão imersos em suas próprias vidas, aprofundados em uma existência que tem a tecnologia como uma extensão natural de si mesmos. Para eles, é difícil entender por que os mais velhos não conseguem, ou não querem, acompanhar o ritmo. Essa falta de empatia pode levar à frustração e até mesmo à impaciência, levando-os a abandonar quaisquer tentativas de ensinar — é a conveniência danosa de pegar o controle remoto, mudar de canal e, pronto, missão cumprida. Em contrapartida, muitos idosos resistem a admitir que precisam aprender algo novo, especialmente quando isso implica reconhecer que estão envelhecendo — constituindo a mesma conveniência prejudicial, agora no formato de chamar, esperar entrar no canal e encerrar por aí. A negação, que é uma defesa psicológica comum, pode se manifestar como uma recusa obstinada em abraçar a tecnologia moderna. Isso muitas vezes é alimentado pela sensação de que suas experiências de vida são menos valorizadas em uma sociedade obcecada pelo novo.
A negação mútua só serve para agravar a exclusão. Enquanto os mais jovens negam sua responsabilidade de guiar os mais velhos através do labirinto digital, as pessoas idosas negam a si mesmas a oportunidade de se conectar mais profundamente com realidades diferentes. Essa polarização cria um fosso cada vez mais amplo entre as gerações, corroendo a coesão social e minando a compreensão mútua. A contradição chega a ser quase palpável quando percebemos que essa retroalimentação entre as gerações não só dá perenidade à exclusão digital, mas também pode limitar a evolução da sociedade como um todo. Se não houver um esforço conjunto para envolver as populações idosas nessa jornada, perdemos perspectivas e sabedoria que poderiam enriquecer decisões e até inovações. Somos todos passageiros em uma mesma jornada temporal, e este agora, por mais que soe como má poesia, é o que nos liga. Será que podemos mesmo nos dar ao luxo de deixar para trás aqueles que nos precederam? Será que nossa obsessão pelo futuro está obscurecendo a importância de preservar o passado?
É importante lembrar que a negação é uma resposta natural a mudanças significativas. Portanto, reconhecer essa resistência e abordá-la com compaixão e paciência é fundamental para romper ciclos que acabam funcionando como verdadeiros tiros no pé. Neste caso, a negação nada mais é do que um reflexo do medo do desconhecido e do desejo humano universal de pertencer e ser valorizado. Ao enfrentar essa negação com compreensão e solidariedade, inicia-se a construção de largas travessias, transformando o fosso geracional em um ponto de partida para a troca de ideias e a construção de um futuro minimamente mais inclusivo.
Toda a questão da irresponsabilidade compartilhada nos leva a refletir sobre como a nossa sociedade valoriza e integra as diferentes gerações. É natural pensar que, ainda que já mais versadas no mundo tecnológico, com a velocidade com que tudo vem mudando, mesmo as gerações que hoje caminham com naturalidade pelas mudanças também sofram exclusão na medida em que forem envelhecendo. É natural que se pense nisso, mas não deveria ser. Encontrar maneiras de garantir que ninguém seja deixado para trás é vital. A inclusão digital não é apenas uma questão de acessar a tecnologia, mas também de cultivar entendimento, respeito e colaboração entre as gerações. No final das contas, a verdadeira evolução não está apenas no domínio de novas tecnologias, mas também na capacidade de nos conectar através das eras, tecendo a história de nossa humanidade com fios de compreensão e respeito. Um controle remoto por vez.