Amarello Visita: Bate-bolas
Fotos de Gleeson Paulino
No calor de algumas das mais animadas ruas e vielas do Rio de Janeiro, entre batuques e sorrisos sinceros, desfila uma tradição tão antiga quanto as montanhas que cercam a cidade maravilhosa. Provavelmente você já ouviu falar dos bate-bolas; mas você sabe, de fato, quem são? Esses guardiões da cultura popular carioca emergem das sombras como personagens míticos, vestidos com suas indumentárias coloridas e máscaras exuberantes, para celebrar o carnaval e manter viva uma história que se entrelaça com a própria essência do espírito carioca.
Remontando às raízes do carnaval do Rio, os bate-bolas são herdeiros de uma história rica e multifacetada — e aqui, no meio de uma longa linha do tempo e de um sem-fim de máscaras, o termo “multifacetado” ganha a beleza da literalidade. Originários das camadas populares e suburbanas, eles surgiram como uma forma de expressão cultural e social, carregando consigo o peso da resistência e da identidade de uma cidade em constante transformação. Aconteça o que acontecer, os bate-bolas estarão de volta quando as épocas de folia chegarem, e, como qualquer um que já presenciou essa magia carnavalesca pode provar, capturariam a atenção de multidões, fosse esse o objetivo.
Mas, não, os bate-bolas não acontecem para multidões verem. Se elas aparecerem para vê-los, tudo bem, mas não é isso que move esses grupos. Eles estão mais interessados em dar vida às entranhas da cidade. Cada encontro é uma viagem ao coração da cultura carioca, uma celebração da diversidade e da criatividade que permeiam as ruas estreitas e os becos escondidos.
Quem são?
A pesquisadora Rafaela Pinah, além de ajudar com a direção criativa de muitas turmas de bate-bola, também estuda os grupos desde 2016. Para ela, o fator cultural e financeiro se misturam para criar um panorama social para lá de positivo: “São economias criativas nos bairros, no subúrbio”, conta. “Elas são extremamente interessantes nessa dinâmica de fator financeiro. Como é que gera e circula o dinheiro ali, nesse movimento inteiro, o ano inteiro? Hoje essas pessoas podem vislumbrar o lugar dessa potência cultural, de agentes culturais locais, trabalhando inteiramente para a cultura do governo do Estado do Rio de Janeiro, criando e trocando com as turmas, trazendo um trabalho psíquico e pedagógico também para essas crianças.”
Com barulho, fantasias trabalhadas que demandam meses de preparação e organizados em grupos que podem chegar a duzentas pessoas, os foliões conhecidos como clóvis — outro nome para os bate-bolas — fazem parte de uma tradição que existe há décadas nas ruas do subúrbio carioca.
Quando o carnaval chega, uma coisa é certa: eles estão vestidos com suas máscaras, luvas, talvez um meião, talvez algo que nem seja facilmente identificado, e sempre estão ou empunhando bexigas ou sombrinhas. A prática é antiga, com registros do início do século XX, mas isso não quer dizer que as portas estejam fechadas para a modernidade: os temas das fantasias se inspiram em personagens da cultura pop, além de a confecção dos trajes utilizar alta tecnologia nas estamparias e os hinos serem gravados em estúdios.
“Temos uma dualidade nesse lugar do contemporâneo e da tecnologia”, reflete Rafaela. “É uma roupa cara de ser feita, de ser produzida. Atualmente, há grupos de jovens com mais recursos e criatividade para criar suas vestes, enquanto outros, com menos recursos, também conseguem criar peças suntuosas usando materiais antigos. Então, você vê essa dinâmica, as turmas entrando também para as redes sociais, a fotografia, a documentação, a capa, o catálogo. O festejo também é super importante para isso!”
Em outro momento “sinal dos tempos”, hoje em dia, portais da internet cobrem alguns dos bate-bolas mais famosos, o que seria inimaginável tempos atrás, quando a imprensa (e todo mundo) não dava a mínima para as festas que ocorriam pelas regiões suburbanas da cidade.
Há até histórias que dão um aceno positivo para o novo momento, comprovando que a novidade não passa a borracha no que já foi, mas tem o poder de renová-lo e até melhorá-lo: “Vou falar de uma figura extremamente importante e emblemática neste lugar, aqui em Realengo, que é o seu Hélio, que era a pessoa que fotografava, revelava na quarta-feira de cinzas e colocava isso num painel. Hoje não, hoje a gente tem uma dinâmica muito mais rápida das fotografias e das imagens”. A instantaneidade trabalha a favor da festa proporcionada pelos bate-bolas.
De um jeito ou de outro, as pessoas dão continuidade a essa tradição. Mais do que simples performances carnavalescas, nesses festejos há um legado precioso que merece ser preservado e valorizado, marcados por tradições orais, ritmos ancestrais e histórias contadas ao som dos tambores.
Para compreender a importância e a profundidade dos bate-bolas, é necessário adentrar nos recônditos das comunidades, onde cada grupo tem sua própria história, seus próprios heróis e suas próprias lendas.
De onde vêm?
Os trajes que mesclam as cores vibrantes de sua terra têm resquícios de uma antiguidade distante. As hipóteses sugerem que suas vestimentas são uma metamorfose de fantasias europeias, um eco dos mitos celtas que atravessaram oceanos para encontrar solo brasileiro. E no nome “clóvis”, uma reverberação estrangeira ecoa a essência de um palhaço, um arquétipo universal entrelaçado à alma desses foliões. Ou seja, na essência, essa celebração contém um testemunho da alquimia cultural, da capacidade humana de transformar o estrangeiro em próprio, o desconhecido em familiar.
No início do século XX, os matadouros, como o de Santa Cruz, teceram o cenário para os primeiros passos dessa dança. Ali, onde o couro de bois e porcos era transformado em bexigas, nasceu o símbolo sagrado dos bate-bolas. E em meio à fumaça dos zepelins e à presença efêmera dos militares alemães que cruzavam os céus, ecoaram os primeiros acordes dessa celebração.
Como as águas que fluem e se mesclam nos rios que cortam nossa terra, as tradições estrangeiras encontraram aqui solo fértil para florescer de forma única. O que começou como mitos celtas e brincadeiras de rua europeias, ao se misturarem com a essência vibrante e criativa do povo brasileiro, se transmutou em algo novo, algo que é nosso, e só nosso. Nesse processo de metamorfose, os bate-bolas se tornaram um lembrete de que a identidade não é estática, mas sim fluida, moldada pelas correntes culturais que nos cercam. E, ao abraçarem essas influências estrangeiras e tecê-las em sua própria tapeçaria cultural, os bate-bolas nos convidam a refletir sobre a natureza dinâmica da identidade nacional e sobre a riqueza que advém do encontro e da fusão de diferentes culturas.
Contudo, foram relegados às sombras por décadas, alvos de olhares desconfiados e da mão pesada da repressão, mas sua resiliência nunca vacilou. Diante da adversidade, ergueram-se, desafiaram as trevas e mantiveram viva a chama da tradição que pulsa no ritmo de seus passos.
Com sua ampla vivência pessoal e acadêmica, Rafaela percebe como as coisas mudaram de panorama: “Hoje a gente vê um prefeito da cidade do Rio de Janeiro muito mais engajado com as culturas populares. E uma dessas é a cultura popular dos bate-bolas. Os bate-bolas estão em clipes da Anitta. Nomes como Poze do Rodo e movimentos de trap que surgem e que emergem das favelas e de periferias e subúrbios cariocas colocam o bate-bola em primeiro lugar. Os bate-bolas estão presentes nas instituições acadêmicas, em grupos de estudos nas faculdades, e isso é muito importante, quando a gente vê jovens negros e periféricos acessando um lugar acadêmico e falando da cultura dos bate-bolas. Vejo um caminho muito incrível, um crescente nesse lugar que é fazer a cultura dos bate-bolas. A gente muda a dinâmica de organização, muito mais comprometida, e hoje temos o poder público também, incentivando financeiramente e com espaços para que a festa aconteça”.
Para onde vão?
Os bate-bolas permanecem como uma das expressões mais vibrantes e autênticas da cultura carioca. Sua presença nas ruas, além de um espetáculo visual, é uma manifestação de identidade e resistência, uma prova viva de que, apesar das transformações e dos desafios, as tradições mais profundas e enraizadas continuam a reverberar. Por essas e outras, os bate-bolas se espalharam mais pela cidade, e a quantidade de foliões só cresceu nos últimos anos. O estigma de violência e perigo que acompanhava as fantasias deu lugar ao espírito de celebração das turmas, que apenas buscam brincar o carnaval e espalhar alegria.
O futuro parece brilhante.
“Eu imagino, no futuro, o mesmo caminho das escolas de samba no Rio de Janeiro. O sambódromo bate-bolas, o desfile, uma liga registrada no Rio de Janeiro que vai classificar e entregar prêmios e doações financeiras, a televisão e a imprensa vindo catalogar e falar da importância de popularizar o bate-bola. Tenho certeza de que será num futuro muito próximo.”
Preservar os bate-bolas, portanto, não é apenas uma questão de manter viva uma forma de entretenimento, mas sim de reconhecer e valorizar o papel fundamental que eles desempenham na construção da identidade cultural do Rio de Janeiro. É garantir que as futuras gerações possam continuar a dançar ao som dos tambores e a celebrar a riqueza e a diversidade da cultura carioca. E é também respeitar a pluralidade dessa tradição, compreendendo que ela carrega consigo uma carga histórica e afetiva que se mistura harmoniosamente com a identidade dos bate-bolas, enriquecendo ainda mais a tapeçaria cultural da cidade.
Nos labirintos das comunidades cariocas, tece-se um elo mágico entre o carnaval de rua e os imponentes desfiles das escolas de samba. Clóvis e bate-bolas merecem ser preservados.
Patrimônio imaterial (e ponto final)
Em 2012, a prefeitura do Rio de Janeiro declarou os bate-bolas patrimônio cultural carioca de natureza imaterial. O decreto levou em consideração a importância desses grupos como personagens típicos do carnaval que refletem a forma alegre e irreverente de a população suburbana festejar. A decisão foi histórica e emblemática. Ao serem declarados patrimônio, os bate-bolas alcançaram um novo patamar de reconhecimento e proteção. Não estamos mais falando de meros personagens do carnaval carioca: de 2012 em diante, viraram oficialmente tesouros culturais a serem preservados e valorizados por gerações futuras.
Os porquês de terem recebido a honraria residem na sua profunda ligação com a história e a identidade da cidade. Ao longo dos séculos, os bate-bolas têm sido testemunhas e protagonistas de inúmeras transformações e eventos que moldaram o destino do Rio de Janeiro. Desde os tempos coloniais até os dias atuais, eles estiveram presentes, fazendo jus ao ânimo do carnaval brasileiro e mantendo viva a chama da tradição.
Os bate-bolas, no fim, personificam valores como solidariedade, criatividade e resiliência, que são essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Tornar-se parte integrante do legado cultural do Rio de Janeiro não significa apenas garantir a continuidade das festividades carnavalescas, mas também promover ações de salvaguarda e valorização. Um viva ao fortalecimento do vínculo entre passado, presente e futuro.
Enquanto os tambores ecoam, as máscaras ganham vida, contando histórias esquecidas e sonhos adormecidos. Cada passo é um lembrete da força do povo carioca, e as máscaras transcendem sua função primária de adorno, transformando-se em portais para um mundo mágico e memorial. À medida que o ritmo acelera, as máscaras se fundem em uma só, revelando a alma de uma cidade que pulsa com a energia da vida.
Assim, eles seguem seu caminho. Onde quer que haja batuques e risos, lá estarão os eternos bate-bolas do Rio de Janeiro. Materialmente e imaterialmente, estarão vibrando e pulando um carnaval que nunca há de acabar.